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Letícia Piccolotto

Do banheiro ao vazamento: onde cabe tecnologia no nosso saneamento básico?

Letícia Piccolotto

19/09/2020 04h00

Brasil precisa vencer desafios do século 18 para que possa aproveitar as oportunidades do século 21 (Van Campos/Fotoarena/Estadão Conteúdo)

Costumo dizer que o Brasil tem desafios do século 18, ao mesmo tempo em que precisa se conectar com as tendências e demandas do século 21. Nada exemplifica esse paradoxo do que a política de saneamento básico: 24% da população não tem acesso à água tratada e (assustadores) 51% dos cidadãos não têm sistema de coleta de esgoto em suas cidades, segundo dados da consultoria Mckinsey.

É bem verdade que o Brasil não é exclusividade quando o assunto é água e saneamento. Diversas nações enfrentam problemas semelhantes, e para representar a relevância do tema, ele é o 6º dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) –também conhecida como Agenda 2030– a partir do qual há o compromisso de "assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos".

Ainda que não sejamos os únicos, não podemos amargar essa situação por muito mais tempo: as condições sanitárias de um país estão diretamente relacionadas com seus indicadores de desenvolvimento, qualidade de vida e saúde. Durante a pandemia, para muitos de nós, ficou evidente como o acesso à água é um luxo, já que muitas pessoas não podiam garantir uma prática tão simples, mas fundamental, como lavar as mãos.

Em julho, uma medida foi criada e promete revolucionar o tema: o novo marco do saneamento básico. Aprovado pela Congresso Nacional e sancionado pelo presidente da República, a legislação traz mudanças estruturais para a área e retoma a importância do tema.

Principais pontos da legislação

O novo marco legal do saneamento básico prevê a universalização do atendimento até 2033, com uma previsão de investimentos de R$ 700 bilhões. Um dos principais pontos da medida –e talvez mais controverso– é a abertura de concorrência ao setor privado para participar das concessões, uma modificação considerável porque, até então, a oferta dos serviços de saneamento tem sido realizada majoritariamente por empresas públicas.

As críticas ao novo marco legal do saneamento transitam entre a forma como a legislação foi construída — para muitos, sem a devida participação das partes interessadas e em um momento em que todas as atenções estão voltadas à resolução da crise trazida pelo covid-19— e também sobre o papel atribuído ao setor privado e seus possíveis desdobramentos.

Sem entrar nos detalhes desse debate técnico, o fato é que ainda há muito o que ser debatido e construído, em termos de regulação, de modo a garantir as condições necessárias para que o principal interesse atendido seja o dos cidadãos. Afinal, é preciso assegurar que a nova legislação seja, no mínimo, efetiva para combater os problemas que hoje existem sem criar ou aprofundar as desigualdades que deveria combater.

E embora muito importante, o novo marco legal não é a única resposta para o problema do saneamento básico no Brasil. Um desafio tão antigo, complexo e que tem desdobramentos tão profundos, demandará um conjunto de soluções, atores e recursos. Isso porque o Brasil tem características que tornam ainda mais difícil o esforço de universalização do saneamento básico. Somos um país com dimensões continentais e com 5.570 municípios –desses, 97% possuem menos de 200 mil habitantes.

Mesmo com a concorrência aberta à iniciativa privada, é pouco provável o interesse em explorar todas essas cidades, já que o investimento em capital deverá ser muito alto e precisa ser compensado pela perspectiva de arrecadação.

Nesse cenário, o uso intensivo de tecnologias inovadoras será fundamental. Elas ajudam a responder ao desafio que temos hoje: como levar acesso ao saneamento básico para todas as pessoas, mesmo em cidades com baixa densidade demográfica, e com recursos limitados?

Govtechs em ação

O ecossistema de startups govtech pode ser fundamental para ajudar a responder essa difícil equação. Já falei sobre esse tema aqui no blog e reforço o recado: as govtechs podem trazer soluções que garantam um saneamento básico eficiente, ágil e de qualidade.

Há muitas experiências que demonstram como isso é possível.

A Oncase, uma das selecionadas no 4º Ciclo do Programa de Aceleração do BrazilLAB, é uma startup que busca combater um grave problema no abastecimento de água: o desperdício. Estima-se que 38,45% de água sejam perdidos na distribuição, segundo dados do Instituto Trata Brasil.

A Scora Acqua busca identificar os focos de vazamento, utilizando inteligência artificial, e direcionando os reparos necessários.

Há também startups que estão criando "smart toilets", ou "banheiros inteligentes", que são mais limpos e eficientes, e permitem a compostagem de matéria orgânica e o aproveitamento de energia, como é o caso das experiências Toilet for People (TfP) ou a Ekam Solutions. Nada se cria, nada se perde. Tudo se transforma.

Outras govtechs se dedicam ao desafio de garantir água potável. É o caso da SDW (Safe Drinking Water for All), da biotecnologista baiana, Anna Beserra, que criou a Aqualuz, uma solução que utiliza somente a energia solar para filtrar a água de cisternas, deixando-a própria para o consumo humano. Implementada na região do semiárido nordestino, custa, em média, R$ 400 e dura 20 anos.

A questão do saneamento básico entra novamente na agenda e, esperamos, deve permanecer até que seja completamente resolvida. Como discuti no blog há duas semanas, devemos buscar uma sociedade que seja próspera para todos e para cada um de nós, e isso passa por garantir o acesso a serviços básicos e tão fundamentais.

Algo tão grave e complexo demandará o esforço conjunto de muitos atores e o uso intensivo de inovação e de tecnologia. As govtechs conhecem o caminho e serão estratégicas para que, de uma vez por todas, esse direito tão precioso seja garantido.

Convite

Na sexta-feira, dia 25 de setembro, lançaremos o "BraziLAB Talks", uma série de debates que deve acontecer todos os meses, até o final do ano, com a participação de especialistas nacionais e internacionais que compartilharão insights sobre a agenda de inovação e tecnologia para o setor público.

A primeira edição é especial e, por isso, lançaremos o relatório "As Startups GovTech e o Futuro do Governo no Brasil", produzido pelo BrazilLAB e pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). A pesquisa inédita no país traz um panorama sobre o ecossistema de GovTechs, com dados sobre áreas de atuação, perfil e porte das empresas.

Se você tem interesse em saber mais sobre esse universo das startups GovTechs, não perca o evento que começa às 14h30 –e acesse às minhas redes e as do BrazilLAB para saber mais.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.