Após pandemia, Legislativo brasileiro está mais tecnológico do que nunca
Quando falamos em transformação digital do setor público, estamos acostumados a ver países como Estônia, Israel, Reino Unido e Portugal como os principais atores desse movimento. De fato, esses nações, e cada qual a sua maneira, têm desenvolvido diversas iniciativas para adotar soluções digitais que fazem com que os serviços públicos sejam mais ágeis, menos complexos e que tenham maior qualidade. São verdadeiras referências e inspiração quando se trata desse tema.
Mas a pandemia de coronavírus e os seus impactos trouxeram luz ao protagonismo do Brasil em um aspecto específico da adoção de tecnologias no setor público: a digitalização do Poder Legislativo.
O movimento não é recente. Há tempos têm sido desenvolvidas iniciativas para incorporar soluções tecnológicas nas casas legislativas, mas isso só ficou mais evidente nos últimos dias, já que tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal conseguiram manter parte considerável de sua atuação mesmo à distância, graças ao desenvolvimento de sistemas digitais e tecnológicos.
O mais interessante é que esse esforço não se restringe somente ao governo federal. Segundo o Observatório Legistech, iniciativa liderada pela Bússola Tech, há 21 assembleias legislativas estaduais e 89 câmaras municipais operando no modelo digital – números consultados em 22 de maio, mas que se atualizam quase diariamente.
Mais do que permitir a continuidade dos trabalhos no momento atual de crise, a atuação online do parlamento pode se estender e continuar no futuro como uma estratégia importante para fortalecer a legitimidade das instituições e das decisões públicas. Principalmente, ela pode ser uma ferramenta valiosa para ampliar a participação social em questões fundamentais e que impactam a vida de todos nós.
O cenário Legistech até hoje
No governo federal, a adoção de tecnologias digitais para apoiar o trabalho do Poder Legislativo teve início há alguns anos. Aliás, essa é uma das principais razões para o seu sucesso. O modelo de votação com reconhecimento de biometria, a transmissão das sessões online e também os sistemas de organização documental do processo legislativo são apenas alguns dos exemplos da incorporação de soluções digitais.
Com a pandemia de coronavírus, esse processo se acelerou.
Segundo dados apresentados pelo secretário-geral do Senado Federal, Luiz Fernando Bandeira, no evento "Transformação Digital nas Casas Legislativas", o Sistema de Deliberação Remota (SDR) começou a ser estruturado no dia 13 de março e a primeira sessão com senadores ocorreu apenas sete dias depois – sendo que em 22 de março o aplicativo para votação já estava disponível. A experiência do Senado Federal virou uma referência e, até 12 de maio, o case já tinha sido acessado por mais de 2000 usuários de cinco continentes diferentes.
No mesmo evento, Beth Noveck, diretora do GovLab da Universidade de Nova York e pesquisadora do tema Legistech, destacou como o Brasil é uma referência na digitalização do parlamento, uma vez que, em países como Estados Unidos e México, a atuação do Poder Legislativo está ou paralisada desde o início da pandemia ou sendo mantida de maneira pontual sem que haja um plano para garantir a operação habitual.
E vale ressaltar a importância dessas medidas, uma vez que o trabalho do Poder Legislativo é fundamental nos momentos de crise, especialmente considerando dois aspectos: a necessidade de aprovar leis que possam garantir medidas sociais e econômicas – por exemplo, o auxílio emergencial para pessoas em vulnerabilidade – e também para assegurar o monitoramento dos gastos governamentais, especialmente considerando as mudanças trazidas à legislação de compras públicas uma vez que foi declarado estado de calamidade – falei sobre isso aqui.
Mas não é só isso. A digitalização do Poder Legislativo pode ser fundamental mesmo depois da pandemia.
Crowdlaw: a participação social na construção das leis
O termo em inglês "crowdlaw" (crowd ="multidão"; law ="lei") indica o processo de construção de leis e políticas públicas a partir da participação da sociedade civil. Segundo a professora Beth Noveck, essa participação pode ocorrer na definição do problema, na formulação de propostas, na construção do texto da lei e também na avaliação sobre os impactos dos serviços públicos.
A ideia de uma maior participação social na elaboração das leis pode parecer distante, mas o Brasil tem uma das experiências de maior sucesso quando se fala em crowdlaw: o Marco Civil da Internet. A lei que estabelece um conjunto de princípios e regras para o uso da internet, foi construída a partir de um processo amplo e participativo – no qual os cidadãos puderam não só definir o tema como relevante, mas também apresentar propostas específicas para a redação do texto da lei.
De maneira muito apropriada ao tema, o Marco Civil da Internet foi redigido por cidadãos a partir de um portal online chamado Wikilegis. Nele, as pessoas puderam apresentar sugestões de texto, debater temas e expor questões sobre o uso seguro da internet. Seguido por diversas consultas sobre o texto legal, e a tramitação nas casas legislativas, a lei foi aprovada em 2014 e inspirou outros países a fazerem o mesmo – dentre eles, a Itália.
Essa experiência só foi possível porque as instituições envolvidas – nos Poderes Legislativo e Executivo – estavam preparadas com soluções para garantir a participação social em meio digital. Por exemplo, a Câmara dos Deputados foi uma das primeiras instituições do governo federal a criar um laboratório de inovação, o LabHacker – que, aliás, foi responsável pela construção do Wikilegis usado para a tramitação do Marco Legal da Internet. Isso sem mencionar o portal e-Cidadania, do Senado Federal, criado em 2012, que permite que os cidadãos possam propor temas para a criação de leis – até maio de 2020, já haviam sido enviadas mais de 74 mil ideias legislativas e 7 milhões de assinaturas foram coletadas.
E para que essa ampla participação seja possível, o uso de tecnologias é fundamental. Soluções como big data e inteligência artificial serão cada vez mais utilizadas para acompanhar as demandas e expectativas da população em relação aos mais variados temas.
Por sua vez, a participação social na construção das leis é fundamental por, ao menos, duas razões.
Primeiro, ela permite que os legisladores aproveitem da inteligência coletiva para pensar soluções que ajudem a enfrentar os problemas complexos – afinal, nada mais apropriado para o trabalho legislativo, responsável pela regulação de diversos temas, do que ouvir as pessoas que serão as mais impactadas pelas decisões.
Segundo, ela possibilita fortalecer a legitimidade para as ações do setor público, um aspecto que tem sido especialmente sensível nos últimos anos para os brasileiros: o Índice de Confiança Social (ICS) publicado pelo Ibope em agosto de 2019, mostra que a confiança nas instituições públicas foi a mais baixa dos últimos 10 anos.
Aliar participação social e tecnologia pode fortalecer as instituições, as decisões e também a democracia.
Tecnologia para transformar as instituições, decisões e a democracia
A transformação no legislativo foi acelerada pela pandemia, a princípio para garantir a continuidade das atividades do parlamento. Mas ela pode ter vindo para ficar e para transformar a participação social na construção das leis. Para garantir que isso seja possível, alguns requisitos devem ser assegurados.
Primeiro, garantir que haja diversidade. É preciso ouvir pessoas com as mais diferentes características, histórias e perspectivas para que a participação seja representativa.
Segundo, que as contribuições apresentadas sejam, de fato, consideradas, não sendo uma participação vazia de sentido ou resultados.
Estamos diante de uma oportunidade única, na qual a tecnologia pode transformar a democracia e fazer dela um exercício diário que não se encerra nas eleições.
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