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Letícia Piccolotto

Transparência é fundamental para enfrentarmos a crise do coronavírus

Letícia Piccolotto

04/04/2020 04h00

Para enfrentar a crise, transparência das informações deve ser encarada como uma prioridade (Freepik)

Uma das definições trazidas pelo dicionário Michaelis para a palavra crise é "conjuntura desfavorável, situação anormal e grave, conflito, tensão e transtorno". Considero que todos esses termos se aplicam muito bem para descrever a situação que temos vivido nas últimas semanas, em virtude da pandemia do coronavírus. Nenhum país, indivíduo, organização ou governo tem passado ileso dos impactos negativos que esse evento tem gerado – e no Brasil, a situação tem sido agravada pela ausência de um elemento fundamental em cenários como esse: a transparência.

No últimos dias, temos visto exemplos concretos que indicam a ausência deste que é um princípio fundamental da gestão pública. A começar pelo próprio Presidente da República que, mesmo tendo sido exposto ao coronavírus, insiste em não compartilhar os resultados de seus testes para a detecção da doença – isso, é claro, sem mencionar suas últimas ações em relação à pandemia que são, no mínimo, contraditórias.

Mas, principalmente, também pudemos acompanhar os debates em torno da Medida Provisória (MP) 928/20, apresentada pelo Governo Federal, e que traz alterações relevantes a um importante mecanismo de transparência dos governos: a Lei de Acesso à Informação, também conhecida como LAI.

Falei há algumas semanas sobre a importância de que, neste momento de profunda crise, possamos ter plena confiança nas ações do Poder Público. E a transparência das informações públicas é o ingrediente mais fundamental para garantir que esse sentimento exista – como mostram todos os países que têm obtido bons resultados no combate à pandemia.

Transparência para vencer os momentos de crise

Desde 2011, quando foi aprovada a LAI, o Brasil caminhou bastante com boas práticas para garantir a transparência governamental. Na última semana, no entanto, o governo federal editou a MP 928/20 que, dentre suas principais medidas, suspendeu o prazo de resposta aos pedidos que sejam direcionados a órgãos públicos cujos servidores estejam em regime de quarentena, teletrabalho ou diretamente envolvidos nos esforços de combate à pandemia. O STF revogou a medida, mas sua apreciação final ainda deverá ocorrer pelo plenário – o que não tem data definida.

Reconheço a importância de cuidarmos dos servidores públicos e direcionarmos sua força de trabalho para os esforços mais emergenciais, mas o que as experiências internacionais têm mostrado é que a transparência pública, aliada a soluções de base tecnológica, é prioritária e imprescindível nos momentos de crise, ao menos, por três razões principais.

Estamos vivendo uma epidemia na era das fake news. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, afirma que, para além de combater a covid-19, tem feito esforços para enfrentar a "infodemia" – a disseminação de notícias falsas e perigosas sobre o coronavírus. Por fazer das redes sociais o seu ambiente de proliferação, também é nesse espaço que as fake news vêm sendo combatidas: o Twitter passou a priorizar publicações feitas por perfis de médicos e instituições de referência em saúde, e o WhatsApp criou um site para conscientizar sobre o perigo de notícias falsas. E a transparência e divulgação de informações de origem governamental devem se juntar a esse esforço.

Vale um parênteses para dizer que nenhuma dessas medidas deve ser confundida com censura. Em 2018, tive a oportunidade de entrevistar [confira abaixo] o VP de Políticas Públicas do Twitter, Colin Crowell, e ele ressaltou como a regulação nacional, especialmente o Marco Civil da Internet, traz um importante equilíbrio entre liberdade de expressão e a atividade livre de comunicação. A mensagem é: não podemos confundir a disseminação de notícias falsas e perigosas  que só comprometem as ações de enfrentamento e contribuem para criar pânico social com o direito que todos temos a expressar nossas opiniões.


Segunda razão: a informação precisa e comprovada é fundamental para que as pessoas possam se proteger e prevenir o contágio. Me refiro a algo que vai além das práticas de higiene pessoal: é necessário informar a respeito do cenário da epidemia e sobre as ações em curso para enfrentar a sua progressão e agravamento. Sem abrir mão da proteção de dados pessoais, é preciso comunicar, portanto, quem são as pessoas doentes, onde estão e qual o perfil epidemiológico da covid-19 – algo que se torna complexo em um cenário com baixo número de testes. Também deve haver transparência em relação ao plano de contingência em curso – quais ações, por quanto tempo e quem será o responsável por implementá-las. Tudo isso permite a existência de colaboração, cooperação e coordenação entre todos.

Há 15 dias, foi reconhecido estado de calamidade pública em âmbito federal. Dentre outros impactos, esta medida altera as regras relacionadas ao orçamento público, permitindo, por exemplo, a revisão dos níveis de endividamento, de despesa com pessoal e a dispensa de licitação para as compras públicas necessárias ao combate da pandemia. Nesse cenário, a transparência é imprescindível porque permite que todos possamos acompanhar as despesas realizadas e avaliar sua conformidade, evitando eventuais abusos que possam acontecer.

Com a crise do coronavírus, ser transparente vai além de uma questão democrática. Trata-se de uma necessidade estratégica e prioritária.

Exemplos que surgem e prosperam

Pixabay

 

Países como a Coreia do Sul, China e Taiwan adotaram estratégias de combate ao coronavírus muito baseadas na transparência de informações. Mas os exemplos não estão somente concentrados no continente asiático. Também vale destacar que quase todas as iniciativas têm como base tecnologias emergentes, desde inteligência artificial e data analysis até chatbots e aplicativos para celular.

É o que mostra a Open Government Partnership, organização internacional que defende as práticas de governo aberto e tem trabalhado na busca de boas práticas em transparência governamental. Em seu portalhá exemplos muito interessantes: na Argentina, foi criado um chatbot para atendimento ao público; Colômbia, Israel e Alemanha estão realizando hackatons e sprints para que equipes de projetos e desenvolvedores possam produzir soluções tech com base em desafios e dados públicos; Cingapura criou uma plataforma para análise do perfil de casos – idade, gênero, nacionalidade e progressão de infectados – com base em informações governamentais. Além disso, a Transparência Internacional criou um esforço conjunto com 13 países da América Latina para propor medidas de integridade nas contratações públicas no contexto da pandemia. 

No Brasil, as govtechs também estão despontando como importantes aliadas para garantir transparência de informações. Alguns exemplos surgem de experiências como a da EuSaúde, inscrita no Selo GovTech do BrazilLAB, e que criou o NovoCoronavirus.info, um portal que traz dados sobre as ações governamentais no Brasil e no mundo, além de orientações para prevenção e combate a informações falsas. Há também a Universaúde, que tem orientado a população a partir de seu serviço de telessaúde, além de uma plataforma de data analysis com informações que ajudam a desenhar o cenário da doença no Brasil: casos confirmados, número de leitos e estimativas populacionais.

As experiências internacionais apontam para o mesmo caminho: a transparência é fundamental e ela ganha ainda mais relevância e alcance quando apoiada por soluções inovadoras e tecnológicas.

Oportunidades

Iniciei esse texto com a definição da palavra crise e afirmando que ela se aplica muito bem ao que temos vivido. Mas o dicionário também aponta uma outra possibilidade: "momento em que se deve decidir se um assunto ou o seguimento de uma ação deve ser levado adiante, alterado ou interrompido; momento crítico ou decisivo".

Também gosto dessa explicação e acredito que ela sinaliza que toda crise é também uma oportunidade. Que possamos aproveitar o momento delicado que vivemos para investir em transparência aliada à tecnologia – e que, ambas, possam ajudar a restabelecer a confiança e credibilidade que os governos tanto precisam.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.