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Que tipo de liderança o Brasil precisa para superar a crise da pandemia?

Letícia Piccolotto

04/07/2020 04h00

Visão de longo prazo, comunicação transparente e foco nos resultados são características fundamentais para os líderes (Jehyun Sung/ Unsplash)

O dicionário Michaelis traz diferentes significados para a palavra crise: conjuntura desfavorável; situação anormal e grave; conflito, tensão, transtorno. Em todos eles há a noção de que a crise é um evento negativo, que desestabiliza as nossas estruturas e que transforma o nosso modo de viver de maneira profunda. 

Não há dúvidas de que a palavra se encaixa muito bem para descrever o contexto atual. Vivemos um momento de crise trazido pela pandemia de coronavírus, algo que se manifesta nas dimensões econômicas, políticas e sociais. Não há país que não tenha sido impactado, em maior ou menor grau, pelos efeitos perversos desse desafio coletivo.

E dentre todas os requisitos fundamentais para enfrentar esse problema, talvez o principal deles seja o trabalho diligente de uma liderança

Há alguns anos tive a oportunidade de estudar na Universidade de Harvard com os professores Ronald Heifetz e Marty Linsky, teóricos da liderança adaptativa. Na época, eu atuava como consultora de investimentos de impacto e começava a sonhar com a criação do BrazilLAB, que veio a ser o primeiro hub GovTech do país que conecta o ecossistema de startups com o setor público. Mesmo tendo convivido com várias lideranças e sido eu, também, a líder de diversas organizações e times, os aprendizados que alcancei na experiência foram transformadores.

Para além de desmistificar ideias pré-concebidas – e quase cristalizadas – do que é ser uma liderança, estudar com Heifetz e Linsky me fez entender o poder que os líderes têm em incentivar pessoas e promover a mudança. E é no momento de crise que as lideranças se tornam ainda mais os protagonistas das transformações positivas – e não há dúvidas de que o momento requer exatamente isso. 

O que é ser líder e o que é liderar

A primeira lição que aprendi é que a noção bastante difundida de que a liderança tem um perfil inato e inalterável – geralmente, pessoas sérias, controladoras, fortes e impositivas – não condiz em nada com a realidade.

Mais do que as características pessoais, a liderança – e não a chefia ou comando – nasce de pessoas que combinam três elementos principais: a preocupação com uma visão de longo prazo, mesmo que conectada com os dados e possibilidades que o presente traz; a habilidade de se comunicar, dialogar e mobilizar as pessoas que estão "sob sua responsabilidade" e o foco prioritário em alcançar resultados concretos e transformadores.  

E cada vez mais temos visto como esses três elementos se manifestam em líderes que têm um perfil adaptativo. São aqueles que fazem um diagnóstico aprofundado e sistêmico antes de agir, considerando as características do contexto, o impacto nas pessoas e a necessidade de ser transparente ao comunicar mudanças.

São as pessoas capazes de gerar um sentimento de propósito e pertencimento, e aquelas que sabem ouvir e rever posicionamentos.

Esse perfil não receia a realidade; ela a abraça, em sua complexidade e desafios, e demonstra um respeito absoluto ao conhecimento. Uma liderança exercida de forma adaptativa é capaz de promover a união em momentos em que esse sentimento é fundamental para vencer os desafios que atingem a todos, sem exceção. 

Lideranças em ação

A liderança adaptativa também não está relacionada à idade, alinhamento político ou nacionalidade. Mas ela tem relação com o gênero. É o que mostra as nações que têm lutado contra a pandemia e são prova de que as mulheres são as que mais têm alcançado êxito contra esse mal.

Países como Taiwan, Alemanha, Nova Zelândia e Islândia, para dar alguns exemplos, contaram com lideranças femininas que combinaram visão de longo prazo, comunicação transparente e foco nos resultados para enfrentar os desafios trazidos pela crise. Em um momento sem precedentes, foram tomadas decisões rápidas, contundentes e efetivas. Os resultados vieram rapidamente e são incontestáveis: a redução da progressão da doença e, por consequência, do número de mortes. 

Há também lideranças adaptativas no mundo privado. É o caso de Luiza Trajano, presidente da Magazine Luiza. Na sexta-feira (3) conversamos na live do projeto "Conversas para Inspirar", que tenho realizado todos os meses em meu Instagrame refletimos sobre o papel da liderança em momentos de crise.  

No outro espectro do perfil adaptativo estão líderes que negaram a realidade e resistiram em agir frente ao contexto que estava se modificando de maneira veloz e profunda. Ao não realizarem um diagnóstico sobre a complexidade do desafio que se impunha, passaram a buscar soluções fáceis, de baixo custo e que não apresentavam resultados. E o pior, na luta por manterem seu estilo de liderar, acabavam por se desconectar das pessoas e por romper com o principal ativo que uma liderança deve cultivar: a confiança. 

Nos últimos anos, especialmente nos países em desenvolvimento e na América Latina, temos sido tomados por uma onda de desconfiança nas instituições e nas lideranças políticas. Há vários estudos que se dedicam a investigar os impactos desse fenômeno – e espero poder falar mais sobre a sua relação com a tecnologia, em breve – mas é a confiança, como sentimento compartilhado, que faz com que seja possível navegar nas incertezas.

E ela será fundamental para o momento de reconstrução e retomada que ainda viveremos. Sem confiança no caminho construído pela liderança, não há como mobilizar pessoas a trilhar. 

Ainda há tempo

O Brasil tem diversos desafios e precisamos de uma liderança que garanta que sairemos da crise, ao menos, não piores do que adentramos. Teremos uma longa e árdua tarefa, afinal, são milhões de brasileiros e brasileiras que hoje se encontram em isolamento social, que viram suas possibilidades de geração de renda minguarem ou que perderam seus negócios, fontes da renda de várias famílias. Será preciso senso de urgência, propósito e confiança para que saiamos, juntos, desse momento. 

E mais do que pensar somente nos próximos meses, temos que acreditar que os cidadãos brasileiros merecem uma liderança que seja inspiradora e comprometida com o interesse público. Esse ano viveremos o exercício renovador das eleições municipais, momento em que se inicia um próximo ciclo. Que possamos escolher com sabedoria verdadeiros líderes que vejam na política o potencial de transformação que ela pode gerar.

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Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.