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Falhas no auxílio emergencial servem de alerta para o risco de e-Burocracia

Letícia Piccolotto

16/05/2020 04h00

O auxílio emergencial é um caso muito relevante para a agenda de governo digital no Brasil (Marcello Casal Jr/ Agência Brasil)

No mês passado, o governo brasileiro deu um passo fundamental para enfrentar os efeitos perversos que a pandemia do coronavírus tem trazido ao país. Em uma medida sem precedentes, e com o apoio de grande parte da classe política, foi aprovado o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 para pessoas em vulnerabilidade social e econômica – ou seja, trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados cuja fonte de renda foi impactada pela crise de saúde pública.

A implementação da medida, no entanto, esteve rodeada de desafios e se tornou muito polêmica nas semanas seguintes. Isso porque o pagamento do auxílio só poderia ser realizado a partir do cadastramento dos beneficiários em um aplicativo da Caixa Econômica Federal – e os usuários relataram diversas inconsistências, dificuldades de compreensão e erros na programação da ferramenta.

O resultado foi exatamente o contrário do que se desejava: aglomerações e filas nas agências bancárias foram se formando à medida em que as pessoas buscavam ter acesso ao benefício.

Tenho discutido como a crise trazida pela pandemia de coronavírus está impulsionado a agenda de governo digital no Brasil. São inúmeros os exemplos de como isso está se consolidando de uma maneira muito positiva: desde telemedicina até a deliberação remota nos Poderes Legislativo e Judiciário.

Mas o que fazer quando a digitalização de serviços para atendimento dos cidadãos parece trazer mais complexidade do que facilidade? Podemos rever as estratégias adotadas, identificar os aprendizados e, a partir disso, adaptar e aprimorar as soluções.

Esses são alguns desses aprendizados:

1º – Reconhecer o tamanho do desafio

O impacto do auxílio emergencial é surpreendente: segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cerca de 55% de todos os cidadãos brasileiros serão elegíveis ao benefício, número que corresponde a 117 milhões de pessoas.

Fazem parte deste contingente os 45 milhões de cidadãos desbancarizados – ou seja, pessoas que não têm ou que nunca tiveram uma conta bancária que possibilite a transferência do recurso, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva.

E para finalizar, estamos vivendo um momento de crise aguda, com grandes incertezas e impactos econômicos que crescem a cada dia que passa.

Em resumo, o desafio é hercúleo. Obviamente, o tamanho da tarefa pouco importa quando temos cidadãos à espera de um benefício tão fundamental e que é um direito.

Esse deveria ser o principal indicador de sucesso, é verdade. Mas é sempre importante ter em vista que o pagamento do auxílio emergencial nos colocou diante da tarefa de resolver em questão de semanas um desafio que é histórico e que vem de muitos séculos: promover a inclusão das pessoas que são mais vulneráveis em nosso país.

Com o auxílio emergencial, estamos falando de algo sem precedentes – daí a importância de refletir sobre como tem sido a implementação e quais são as possibilidades de melhoria.

2º – A urgência de uma identidade única e digital

O auxílio emergencial acabou por expor um grande desafio em nosso país: a necessidade de identificação dos cidadãos.

É bem verdade que avançamos muito em parte dessa tarefa, já que, segundo dados do IBGE, o sub-registro de nascimentos foi de 2,61% em 2017 – ainda que haja variações no percentual a depender da região do país. Assim, nós conseguimos registrar as pessoas, mas ainda estamos distantes de garantir uma unicidade desta identificação.

Temos múltiplos documentos, que por sua vez geram diversas bases de dados, quase sempre desconectadas e geridas por órgãos que poderiam otimizar o uso da informação e facilitar a vida dos cidadãos.

Esse tema foi amplamente discutido no GovTech Brasil, primeiro evento internacional sobre o tema no país, e que foi promovido em 2018 pelo BrazilLAB e pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). No evento, foram apresentadas experiências internacionais de identificação única e digital, como o Aadhaar, implementado pela Índia [veja abaixo], e que consiste no maior sistema de identificação biométrica do mundo: são mais de 1,2 bilhão de cidadãos indianos com uma identidade digital de 12 números que centraliza todas as suas informações e permite o acesso aos mais diversos serviços públicos – por exemplo, o pagamento de auxílios e benefícios.


No Brasil, desde 2017 temos discutido a construção do Documento Nacional de Identidade (DNI) e, mais recentemente, a Estratégia de Governo Digital reconheceu como um de seus objetivos promover a identidade digital de 40 milhões de brasileiros até 2022.

Essa deve ser uma prioridade governamental para que seja possível corrigir uma dívida histórica perante os cidadãos: a garantia de uma identidade. Tanto melhor que ela seja única e digital.

3º – Governos precisam ser cada vez mais digitais, mas também devem ser analógicos

Pode parecer um contrassenso, mas não é. Sou uma entusiasta da agenda de governo digital porque acredito que as novas tecnologias permitem que a interação com governo seja uma experiência positiva, simples e rápida. Mas também defendo que a transformação digital tenha como princípios fundamentais a equidade e o foco no cidadão. Isso porque, mesmo com todos os seus benefícios, a tecnologia também pode ser um instrumento de profunda exclusão, especialmente em contextos como o brasileiro: 29% de nossa população se insere no grupo de analfabetos funcionais e também amargamos o fato de que quase 90% dos que não acessam a internet estão nas classes C, D e E.

E para garantir esses princípios, é preciso que o governo diversifique a sua oferta de serviços, prezando pelo fino equilíbrio entre presencial e online e entre o digital e analógico.

O setor público deve ser acessível a todos – especialmente para quem mais precisa – e para isso deve se reinventar e também inovar: por vezes, mantendo alguns canais mais tradicionais de interação com as pessoas.

E não só isso: download de mais de um aplicativo, requisição de senhas e autorizações, processamento de informações, baixa transparência do processo de análise. Essas foram algumas das críticas feitas ao modelo adotado para o pagamento do auxílio emergencial e elas são muito pertinentes e comunicam a mensagem óbvia de que a digitalização deve simplificar e não complexificar ainda mais os serviços públicos.

Consideradas todas as possíveis razões para que a inscrição para o benefício tenha sido, ao menos em seu lançamento, exclusivamente via online – dentre elas, a necessidade de garantir rapidez e evitar a aglomeração de pessoas em equipamentos públicos – é preciso reconhecer que ela traz consigo o sério risco de produzir ainda mais exclusão em um momento em que é preciso ampliar o acesso a direitos.

E muito importante: a implementação do auxílio emergencial evidencia o cuidado que os governos devem ter para que a transformação digital não gere um fenômeno muito comum: a e-Burocracia. Ela é a perpetuação de todas as disfunções que vemos na burocracia analógica, com a diferença de estar agora em meio digital.

Para evitar a e-Burocracia, é preciso rever processos, identificar os problemas e sempre construir serviços digitais que estejam focados nos cidadãos – em suas necessidades, recursos e expectativas.

4º – Educação digital para todos

É preciso garantir que todas as pessoas, especialmente aquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade, possam ter a oportunidade de desenvolver suas habilidades digitais e tenham autonomia para operar soluções e equipamentos tecnológicos – como um smartphone ou um aplicativo, por exemplo.

Segundo a pesquisa "Panorama da Transformação Digital no Brasil", 40% das pessoas com 60 anos ou mais não acessam a internet porque consideram que não dispõem das habilidades necessárias.

E é possível ir além: a educação digital engloba diversas dimensões que são fundamentais para o uso saudável e responsável das tecnologias: segurança das informações pessoais, compartilhamento de dados e também o comportamento ético na internet. Educar para a digitalização é também garantir que a transformação seja inclusiva.

Essa experiência não termina aqui

Estamos diante de um caso extraordinário para refletir sobre o impacto da digitalização do setor público.

O pagamento do auxílio emergencial lança luz sobre questões que vão muito além da experiência específica e da construção de um aplicativo de serviços governamentais. Ele engloba debates históricos como inclusão, governança, educação e infraestrutura tecnológica.

Diversas medidas já foram tomadas para adaptar o processo de concessão do benefício e talvez não teremos o melhor dos aplicativos agora. Mas essa experiência pode ser muito valiosa para o futuro. Podemos e devemos reconhecer os erros e acertos para que seja possível aprimorar a transformação digital dos governos no Brasil.

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Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.