O que a crise do coronavírus e as mudanças climáticas têm em comum?
O documentário "Pandemia", disponível na Netflix, faz um alerta bastante sério em relação às doenças que têm potencial de contaminação global: o surgimento delas não é mais uma questão de "se", mas de "quando" e "como" deve ocorrer.
Essa é uma preocupação que não surgiu agora, já que há tempos pesquisadores vêm apontando sobre o risco de pandemias e quais os potenciais fatores que impulsionam o seu aparecimento cada vez mais frequente.
Bill Gates é uma dessas pessoas. Esta semana compartilhei em minhas redes sociais um vídeo em que o fundador da Microsoft alertava sobre o perigo da próxima epidemia, ressaltando que não estaríamos preparados para enfrentar esse desafio, a não ser que começássemos imediatamente, implementando um esforço de coordenação a nível global. O ano era 2015 e o prognóstico foi assustadoramente preciso sobre o que estamos vivendo hoje – inclusive, sobre nossa (não) capacidade de resposta.
Ainda serão realizadas pesquisas aprofundadas, mas análises preliminares apontam que o surgimento do coronavírus é de origem zoonótica – ou seja, veio de animais. Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP) publicado em 2016 aponta que 60% de todas as doenças infecciosas que atingem os seres humanos surgem de animais. Além disso, 75% delas são chamadas de "doenças infecciosas emergentes" por terem surgido há pouco tempo: estima-se que, em média, uma nova enfermidade possa surgir entre seres humanos a cada quatro meses.
Nos últimos dias, comecei a me perguntar o porquê de tão grave previsão – e, mais importante, se há algo que possamos fazer para evitar que ela se torne verdade. E o que tenho lido aponta para uma realidade que precisamos modificar: o impacto das atividades humanas sobre o meio ambiente tem contribuído não somente para as mudanças climáticas, mas está diretamente relacionado ao rápido surgimento de doenças cada vez mais perigosas – como o coronavírus.
Mudanças climáticas e o surgimento de pandemias
Há uma profunda relação entre o surgimento de pandemias e as mudanças climáticas, uma vez que ambas são potencializadas em virtude das ações humanas, como o crescimento e concentração de populações em áreas urbanas e também atividades que resultam em degradação e redução de ecossistemas ambientais.
Segundo dados do UNEP, mudanças no uso da terra, na indústria de agricultura, além do comércio e viagens internacionais correspondem por 59% dos fatores primários responsáveis pelo surgimento de novas doenças.
Para alterar esse cenário, os especialistas afirmam que a prevenção e a capacidade de resposta devem ser estratégias a serem adotadas. Ou seja: é preciso monitorar constantemente o surgimento de novas doenças, evitando que elas se espalhem e possam atingir níveis de contaminação global, como é o caso das pandemias.
Essas medidas, embora fundamentais, são também paliativas. Para enfrentar o problema, é preciso atingir sua causa: precisamos equilibrar o desenvolvimento social e econômico das nações com medidas para garantir a preservação e a integridade do meio ambiente.
Nos últimos dias, nós temos visto o impacto que nossas ações têm para a natureza, tudo isso graças às ações de distanciamento social e quarentena em todo o mundo.
Pandemia tem sido um respiro para o meio ambiente
Um dos efeitos não esperados do coronavírus tem sido o seu impacto positivo sobre o meio ambiente. Na China, epicentro da pandemia, houve uma redução de 25% na emissão de CO2 em apenas quatro semanas, segundo dados do Carbon Brief. Essa cifra pode ser bastante abstrata mas, para termos uma ideia da relevância do número, a quantidade equivale a retirar 200 milhões de toneladas de gases do efeito estufa do meio ambiente. Tudo isso ocorreu em virtude da redução de todas as atividades econômicas no país: indústrias, circulação de meios de transporte, como carros e aviões, além da desaceleração do setor comercial.
Aqui em São Paulo também podemos observar mudanças por conta das medidas de distanciamento social e quarentena. Dados das 29 estações de monitoramento da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), por exemplo, apontam que a qualidade do ar é "boa" em toda a região metropolitana.
Segundo informações do Programa de Mudanças Climáticas do Instituto Arapyaú, a crise do coronavírus tem também impactado a região amazônica. Há uma preocupação específica com a saúde da população indígena, já que o grupo é mais sensível à letalidade de doenças infecciosas. O Instituto Socioambiental (ISA), criou uma plataforma de monitoramento específica para acompanhar a situação de saúde de grupos indígenas em todo o país.
Em relação ao desmatamento na região, há expectativas positivas, mas elas também se somam ao receio sobre os impactos que a crise pode ter no longo prazo. Isso porque a desaceleração econômica pode até reduzir o desmatamento no curto prazo, mas é preciso haver vigilância constante para que ele não seja substituído por outra atividade ilegal.
Embora as notícias possam ser animadoras, mesmo nesse momento de crise, é preciso reconhecer duas verdades. Primeiro, os reflexos positivos têm pouco efeito para reverter o cenário de mudanças climáticas se não forem transformados em uma ação de longo prazo. Isso se conecta com o segundo ponto: infelizmente, a tendência mais razoável é que a melhoria nos indicadores ambientais não se mantenha uma vez que as atividades econômicas retornem ao seu patamar pré-crise – o que, cedo ou tarde, irá acontecer.
Inovação e tecnologia para transformar
O que temos vivido nos últimos dias mostra que não há alternativa mais efetiva para prevenir que novas epidemias possam ocorrer: precisamos monitorar constantemente o surgimento de doenças e também garantir que sua principal causa – ou seja, o impacto negativo das ações humanas no meio ambiente – seja eliminada.
E as healthtechs e greentechs têm apresentado soluções promissoras para ajudar com essa difícil tarefa.
Um exemplo é a startup pernambucana Epitrack, criada em 2013 na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-PE). Ela tem sido referência na construção de plataformas baseadas em crowdsourcing e inteligência epidemiológica. Uma de suas soluções tem como base a estratégia de vigilância epidemiológica participativa: em linhas gerais, os usuários descrevem seus sintomas no app e, a partir desses dados, são construídos mapas que detalham o comportamento da doença no território. Informação muito valiosa para orientar o trabalho de gestores públicos.
Fazem parte da rede do BrazilLAB algumas greentechs que utilizam tecnologias de ponta para contribuir com o meio ambiente. É o caso da Plataforma Verde, que utiliza o blockchain, uma solução que permite o registro, mapeamento e o rastreamento de informações em uma ordem cronológica e conectada entre si. Por estar descentralizada, a informação ganha mais segurança, sendo muito difícil ser alterada ou corrompida de qualquer forma. A solução desenvolvida pela startup tem sido aplicada para a gestão de toda a cadeia de resíduos sólidos – desde a geração do lixo até o seu destino final.
A solução da BRFlor, por sua vez, pode ser aplicada para combater o desmatamento ilegal – que, segundo estimativas da startup, é fonte de 80% da madeira produzida no Brasil. Com base em tecnologias como blockchain, internet das coisas (IoT) e a inteligência artificial, ela permite registrar e rastrear a produção madeireira garantindo sua legalidade. Solução que pode ser muito bem aplicada pelo órgãos ambientais de fiscalização e controle.
Há também startups atuando no mercado de energia renovável, como é o caso da Sunew, que criou painéis orgânicos para captar energia solar. Eles podem ser instalados em prédios, carros e até mesmo no transporte público – gerando uma energia limpa e que é abundante em um país como o Brasil.
Outras empresas se dedicam ao grave problema do saneamento básico – como já discuti aqui. Como a Oncase, uma das selecionadas no 4° Ciclo do Programa de Aceleração do BrazilLAB, que desenvolveu uma solução a partir da inteligência artificial, e que vem sendo utilizada para identificar e corrigir o desperdício de água nos sistemas de abastecimento em cidades.
Precisamos reduzir o impacto de nossa existência no planeta. E as tecnologias serão fundamentais para isso. Quanto mais cedo iniciarmos, melhor resultados teremos.
Aprendizados de hoje para orientar o amanhã
A pandemia do coronavírus deixou ainda mais evidente o impacto que as atividades humanas têm sobre o meio ambiente, assim como a relação entre tais impactos e o surgimento de doenças. Para mim, fica claro que fazemos parte de um sensível equilíbrio cíclico – e é nosso papel garantir que ele seja sempre mantido.
James Holland, professor da Universidade de Stanford nos EUA, destaca que nós "fizemos muito para projetar um mundo onde as doenças infecciosas emergentes são mais prováveis e mais prováveis de acontecerem de maneira consecutiva, exatamente como projetamos um mundo em que incêndios florestais, inundações, secas e outras consequências locais das mudanças climáticas são mais prováveis e cada vez mais frequentes".
Essa leitura me parece muito importante, porque indica que a crise que vivemos não nos foi imposta – mas sim é resultado direto de nossas ações. Há, portanto, a possibilidade de mudarmos esse cenário.
Torço para que seja verdade o que tenho ouvido nos últimos dias: que a pandemia transformará o mundo em que vivemos. E torço também para que possamos utilizar esse período para refletir sobre a importância da prevenção e o valor que o uso de tecnologias pode trazer. E principalmente, espero que a versão da humanidade que sairá deste momento de crise seja melhor e mais gentil com o meio ambiente – a saúde e a sobrevivência de todos nós depende disso.
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