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Letícia Piccolotto

Games também podem contribuir para a atuação dos governos; entenda

Letícia Piccolotto

29/02/2020 04h00

Ekkaphan Chimpalee/iStock

Nos últimos anos, os jogos online tomaram conta de nossas vidas. Com a facilidade trazida pelos smartphones, podemos jogar em praticamente qualquer lugar: na fila, enquanto esperamos por atendimento; em casa, depois de um longo dia; e até mesmo durante uma longa viagem.

O universo dos games é também uma indústria muito valiosa. São feiras, campeonatos e eventos que atraem milhões de pessoas e uma quantidade igualmente surpreendente de recursos: no Brasil, segundo dados da PwC, o mercado de games para dispositivos móveis tem uma receita projetada de US$ 712 milhões para 2021.

Além disso, há muito tempo os jogos deixaram de ser um passatempo exclusivo das crianças ou jovens: os games têm se tornado um sucesso entre pessoas de diversas regiões, idades, gêneros e culturas.

A diversão e distração trazidas pelos jogos se combinam ao fato de que cada vez mais tem se tornado difícil manter-se engajado nas atividades diárias. Segundo uma pesquisa da consultoria Gallup, de 2017, apresentada pela OCDE, 85% dos trabalhadores não estão ativamente engajados em suas atividades. Esse mesmo cenário pode ser observado em outros espaços –por exemplo, nas escolas, nas atividades esportivas, na participação política. Não há dúvidas de que a desmotivação tem se tornado uma epidemia mundial.

Mas e se fosse possível trazermos a experiência dos jogos para a "vida real"? E se a estrutura dos games pudesse ser aplicada para ajudar estudantes a se engajarem no processo de aprendizado, pacientes a seguirem o tratamento médico e cidadãos a se comunicarem com os governos e participarem das decisões relacionadas às políticas públicas?

Isso já é realidade. Diversas iniciativas têm aplicado os princípios dos jogos a partir de uma metodologia chamada de gamificação (do inglês gamification). E ela pode transformar o modo como nós interagimos e executamos as mais diversas atividades cotidianas.

 Por que gostamos tanto de jogos?

Freepik

Tente se lembrar da última vez que participou de algum jogo – de cartas, tabuleiro ou esporte. Por definição, sua estrutura cria incentivos para a participação, baseados na lógica de competição e recompensa: um jogo de cartas envolve o ganho de pontos; o de tabuleiros, a lógica de fases, que trazem maiores dificuldades e também mais prêmios; o esporte, por sua vez, implica competição, consigo mesmo ou com outras pessoas.

Todas essas características são instigantes e tendem a estimular a participação, motivar seus participantes e garantir a aderência ao próprio jogo. E o mais interessante é que essas técnicas podem ser incorporadas no desenho de serviços públicos para que eles não sejam mais processos entediantes, cansativos ou traumáticos –mas, ao contrário, possam se transformar em experiências envolventes, interessantes e, por que não, divertidas.

As técnicas de gamificação têm sido aplicadas nas mais diversas áreas, como educação, saúde, nutrição, participação social, trabalho e meio ambiente. São experiências desenvolvidas no Brasil e também em diversas partes do mundo, combinando elementos tecnológicos, como plataformas e aplicativos para smartphones, mas também estratégias mais "analógicas", como tabuleiros de jogos ou mensagens SMS.

Uma dessas experiências é o Nutrido. Implementado em Abuja, na Nigéria, o jogo tem como objetivo influenciar os hábitos alimentares de jovens em idade escolar. Nada mais é do que um jogo de tabuleiro que tem um sistema de recompensa composto por fichas que podem ser trocadas por frutas ou vegetais vendidos no comércio local. Segundo o IF World Design Guide, pesquisas demonstraram que a participação no jogo fez com que os estudantes transformassem seus hábitos alimentares, passando a incluir mais opções saudáveis em suas dietas.

Outro exemplo é o Cidade em Jogo, uma iniciativa desenvolvida pela Fundação Brava e pelo Woodrow Wilson Center (Brazil Institute). O jogo online trabalha com a lógica de role playing: o jogador assume o cargo de prefeito para decidir quais são as melhores soluções para enfrentar os maiores problemas de sua cidade.

Espera-se que, ao ser responsável por definir as prioridades do governo, fazer a gestão dos recursos públicos e atender às expectativas de seus cidadãos, o jogador-prefeito possa se engajar nas questões relacionadas à vida pública e tornar-se mais politicamente consciente, ampliando sua participação social e política.

O Cidade em Jogo já foi praticado por mais de 25 mil usuários e, em 2018, foi escolhido pelo Observatório do Setor Público da OCDE como um case de sucesso para o engajamento cívico de jovens.

A metodologia de gamificação também tem sido aplicada por startups no Brasil.

A So+ma é um desses exemplos. A organização atua na temática ambiental e criou um programa de vantagens para trocar atitudes por recompensas: ao reciclar o lixo, os participantes acumulam pontos que podem ser trocados por vários prêmios, como cursos, exames, alimentação básica, experiências e descontos em supermercados.

Os resultados são muito relevantes: até 2019, 4.000 famílias já tinham sido beneficiadas, o que gerou uma economia de mais de R$ 100 mil e a reciclagem de quase 300 toneladas de resíduos.

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No campo das health techs – as startups que atuam na área da saúde – também encontramos vários exemplos da aplicação de gamificação, como a Cuco Health. Ela também foi uma das startups aceleradas pelo BrazilLAB e desenvolveu uma solução para ampliar o engajamento de pacientes que sofrem com doenças crônicas –como diabetes ou hipertensão– ao tratamento médico.

Trata-se de uma "enfermeira digital": a solução lembra ao paciente a hora de tomar o medicamento, apresenta conteúdos confiáveis sobre a doença, indica hábitos saudáveis, além de permitir o acompanhamento por cuidadores.

A estratégia de gamificação fica por conta dos estímulos e recompensas dados ao paciente: sempre que o tratamento é seguido de maneira adequada, um painel de conquistas e metas diárias é atualizado. Os resultados são muito relevantes: aplicado na cidade de Juiz de Fora (MG), a solução contribuiu para ampliar o engajamento de pacientes no tratamento médico.

Possibilidades ainda a explorar

Há muitas possibilidades, mas também desafios para a utilização das técnicas de gamificação para os serviços públicos. Por exemplo, o desenvolvimento de um jogo é altamente complexo, envolve conhecimentos técnicos e também muita precisão sobre o problema que se deseja enfrentar.

Ainda assim, não há dúvidas de que a utilização dessa técnica tem mostrado como a motivação e o engajamento trazidos pelos jogos podem transformar os resultados dos serviços públicos. Elas podem ser aplicadas em vários contextos e com diferentes estratégias, seja com o apoio de tecnologias ou não.

Os jogos –e a diversão trazida por eles– podem ser uma poderosa ferramenta de motivação para todas as idades.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.