Reinventar o saneamento básico com a tecnologia é desafio para salvar vidas
No final de 2019, a plataforma de streaming Netflix lançou o documentário "O código Bill Gates", que investiga a trajetória e a mente do fundador da legendária Microsoft. Uma das passagens me chamou bastante a atenção: após ler uma notícia sobre a morte de crianças em decorrência de diarreia, Bill e Melinda Gates decidem dedicar parte considerável dos recursos de sua fundação filantrópica para enfrentar a falta de saneamento básico, um problema global que, segundo dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), atinge 4,5 bilhões de habitantes do planeta.
E essa é uma realidade difícil de compreender. No Brasil, por exemplo, metade de nossos habitantes não têm acesso à rede de tratamento de esgoto e 35 milhões de brasileiros não são abastecidos por água tratada – número que equivale à população do Canadá. E o impacto desse descaso é cruel. Mais de 1,5 milhão de crianças com menos de 5 anos em todo o mundo morrem devido ao fornecimento inadequado de água.
Os desafios para mudar esse cenário são enormes e, talvez, o principal deles seja o custo para universalizar o serviço, já que as cifras giram em torno de R$ 508 bilhões só para o nosso país, de acordo com estimativas do Instituto Trata Brasil, para o período de 2014 a 2033.
No entanto, o grave problema do saneamento básico também pode se tornar uma oportunidade de economia de recursos da ordem de US$200 bilhões, além de um mercado potencial de US$6 bilhões até 2030 – segundo dados da Bloomberg e do Boston Consulting Group (BCG), respectivamente.
Reinventando o saneamento básico
O saneamento básico compreende, pelo menos, quatro áreas de atuação: o tratamento de esgoto, o abastecimento de água, a gestão de recursos pluviais (chuva) e dos resíduos sólidos. E garantir um atendimento adequado desses componentes tem sido um desafio não só para países pobres, mas também para aqueles que possuem muitos recursos.
Para os países em desenvolvimento, o desafio é assegurar soluções que sejam baratas e que possam ser replicadas em larga escala. Já as nações com mais recursos, que contam com uma oferta de saneamento organizada, têm o desafio de realizar a manutenção de sua estrutura – muitas vezes antiga e cara – e garantir o atendimento enquanto o número de habitantes cresce. Essa é a realidade de grandes metrópoles como, por exemplo, São Paulo.
Esse cenário transforma o saneamento básico em uma equação bastante difícil de se resolver: o desafio é urgente, tem alto impacto mas, ao mesmo tempo, precisa de soluções de baixo custo e que possam ser implementadas em distintos contextos. Ele é um problema complexo e, como tal, demanda iniciativas inovadoras – e a tecnologia tem se mostrado como o principal elemento para balancear esses fatores.
Nada se perde, tudo se transforma
As tecnologias recentes têm combinado ciência e inovação para dar novo destino aos detritos e propor novas soluções para o tratamento da água. Entre as estratégias utilizadas estão a oxidação úmida, combustão seca, estações de biotratamento e processamento eletroquímico. Os nomes soam complexos, mas trazem consigo uma excelente notícia: quando falamos de saneamento básico, o antigo (e caro) modelo de sistemas de esgotos, canos e estações de tratamento pode estar com os dias contados.
Algumas startups perceberam a oportunidade desse mercado e têm desenvolvido novas soluções a cada dia, inclusive aqui no Brasil.
Um exemplo é a startup SDW (Safe Drinking Water for All), fundada pela biotecnologista baiana, Anna Beserra. A solução, chamada Aqualuz, implementada na região do semiárido nordestino, utiliza somente a energia solar para filtrar a água de cisternas, deixando-a própria para o consumo humano. A solução custa, em média, R$ 400, dura 20 anos e sua operação pode ser realizada de maneira muito simples, pelas próprias famílias. Graças ao sucesso da iniciativa, a fundadora recebeu, em 2019, a premiação Jovens Campeões da Terra, organizado pela ONU.
Outra startup do ramo é a Oncase, uma das selecionadas no 4o Ciclo do Programa de Aceleração do BrazilLAB. No Brasil, 38,5% da água distribuída é perdida, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2018. A empresa viu nesse problema uma oportunidade e desenvolveu a Scora Acqua, uma solução que combate o desperdício a partir da utilização de inteligência artificial, que identifica, analisa e seleciona equipamentos que devem ser substituídos.
As experiências de sucesso vêm também de outros países. A Ekam Eco Solutions, por exemplo, desenvolveu um sistema de sanitários que independe de água para o seu funcionamento. De maneira semelhante, a 3S (Sanitation Solution Simplified) criou um modelo de sanitários de baixo custo e alta eficiência que já foi implementado em várias localidades da Índia.
Para não deixar dúvidas
A falta de saneamento básico é um problema humanitário, urgente e que tem comprometido o desenvolvimento de vários países, incluindo o Brasil. Ele pode até parecer invisível, mas a verdade é que representa uma ameaça à vida das pessoas – quase sempre as que já estão em maior situação de vulnerabilidade social e econômica.
Não há como avançar sem que essa questão esteja resolvida. Levará tempo, é verdade, mas a boa notícia é que a tecnologia é um instrumento poderoso para enfrentar esse desafio. Os exemplos estão surgindo, cada vez mais disruptivos e inovadores; e o resultado também surgirá: segundo o Instituto Trata Brasil, para cada R$ 1 investido em saneamento básico, é possível gerar uma economia de R$ 4 em gastos com saúde.
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