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Letícia Piccolotto

Governo começa a estudar a inteligência artificial; devemos ter medo?

Letícia Piccolotto

07/12/2019 04h00

Pixabay

A inteligência artificial tem estado presente no imaginário coletivo há muito tempo. Quase sempre retratada de maneira negativa em filmes futuristas, a partir de cenários de disputa entre máquinas e seres humanos, não é surpresa reconhecer que muito pouco tem se discutido sobre os avanços e possíveis benefícios trazidos por essa tecnologia disruptiva. 

Para começar: a inteligência artificial, ou IA, consiste em um processo no qual as máquinas conseguem desenvolver aprendizado a partir da análise de grandes volumes de dados. Ao entender os padrões existentes, elas podem desenvolver ações muito similares àquelas que são realizadas por nós, humanos: de um jogo de xadrez até o diagnóstico de doenças a partir de exames médicos. 

O temor de que a IA possa transformar o ser humano em uma figura obsoleta está, de fato, muito presente: segundo pesquisa realizada pela consultoria BCG, o impacto sobre a geração de empregos e as implicações éticas são os principais receios de quase 14 mil participantes do estudo. Ainda, 25% manifestaram receio sobre a existência de discriminação ou viés pela IA, ao passo que 31% destacaram como preocupação a baixa transparência no processo decisório da tecnologia. Considerando o papel do governo, 58% acreditam que ele deve regular o uso da IA de modo a assegurar que as vagas de trabalho hoje existentes não serão extintas.

Ainda que o medo seja um fator considerável, também é verdade que as organizações governamentais, instituições de ensino, profissionais de saúde e outros agentes públicos estão cada vez mais reconhecendo, em todo o mundo, que atender às necessidades dos cidadãos demandará a adoção de novas tecnologias. E a inteligência artificial pode representar essa importante ferramenta para expandir as capacidades humanas, trazendo mais eficiência e efetividade também para o governo. 

O Brasil está dando os primeiros passos para se inserir neste movimento transformador. Recentemente, o Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, anunciou a criação de oito laboratórios de inteligência artificial no país. Pontes afirmou que quatro laboratórios estarão diretamente ligados a temas específicos – cidades 4.0, indústria 4.0, agro 4.0 e saúde 4.0 -, um será dedicado à questão de cibersegurança e, dos três restantes, um será ligado à inteligência artificial aplicada à administração pública. Este é uma importante medida para transformar o cenário governamental como o conhecemos. 

Cidadãos querem mais

Para quem lê as manchetes dos jornais, pode haver a sensação de que um investimento em inteligência artificial está distante do que o país precisa. Mas o cenário precisa ser avaliado de uma maneira bem mais ampla.

A geração dos Millennials (nascidos nos anos 1980 e 1990) e a geração Z (nascidos entre o final dos 1990 e até 2010) têm expectativas diferentes de seus pais. Com a globalização e a democratização do conhecimento a partir dessas gerações, impulsionadas, principalmente, pela internet e os dispositivos móveis, o cidadão médio passou a consumir serviços de todos os tipos de uma maneira totalmente nova. Desde o pagamento de um imposto diretamente pelo smartphone até a localização, em tempo real, do ônibus, passamos a desejar acesso a serviços de saúde, educação e tantos outros de uma maneira mais conveniente. E a inteligência artificial geralmente é a solução para fornecê-lo.

Por exemplo, essa tecnologia pode apoiar o governo a receber, armazenar e gerenciar um volume avassalador de dados – que hoje, estão quase sempre desconectados entre as diversas instituições públicas. Com a inteligência artificial, há um imenso ganho não só pela conexão desses bancos, mas principalmente pela geração de insights ricos e capazes de otimizar decisões e ações de prefeituras, estados e do governo federal.

Outro grande desafio governamental que a tecnologia abraça é a segurança cibernética. Ao manter sistemas antiquados, os governos gastam muito tempo tentando protegê-los – o que pode, inclusive, expor informações e dados confidenciais a fraudes e colocar em risco todo o ecossistema. 

A economia é outro ponto central na defesa da IA no setor público. Um relatório da consultoria Deloitte, avaliando o cenário dos EUA, estimou que simplesmente automatizar tarefas que os computadores já fazem rotineiramente poderia liberar 96,7 milhões de horas de trabalho da esfera federal anualmente – economizando em torno de US$ 3,3 bilhões. Mas, se fossem aplicadas tecnologias de inteligência artificial nos projetos, seriam liberadas 1,2 bilhão de horas de trabalho por ano, gerando uma economia de US$ 41,1 bilhões.

As aplicações da IA são concretas e infinitas: uma análise minuciosa de imagens de vídeo pode ajudar a encontrar suspeitos em casos criminais; um sistema integrado pode identificar, dentre os alunos em uma classe, quem precisa se dedicar mais a qual tema para evoluir; uma varredura no sistema de saúde identifica, pelo registro de atendimentos, quais ações podem controlar uma epidemia. 

Ser humano em uma realidade de IA

As preocupações que envolvem o uso de IA são reais, relevantes e não podem ser ignoradas. Também é verdade que a transformação digital é um caminho de grande impacto positivo e para o qual não há volta. Assim, nos resta decidir como queremos nos inserir na mudança. 

Em um momento de transição tecnológica e em que muitas perguntas ainda não possuem resposta, podemos trabalhar com base em alguns princípios: a construção de confiança, a transparência no processo e o fortalecimento das capacidades de instituições públicas liderarem a transformação. Há muitos benefícios trazidos pelas tecnologias e pela IA – não podemos deixar que o medo nos impeça de aproveitá-los.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.