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Letícia Piccolotto

Como startups estão atuando para conter o desperdício mundial de comida

Letícia Piccolotto

23/11/2019 04h00

Nrd/Unsplash

Parece até contra intuitivo: em um mundo onde milhões de pessoas sofrem com a fome, há uma epidemia de desperdício de alimentos. Os números são realmente assustadores: aproximadamente um terço dos alimentos produzidos no mundo para consumo humano a cada ano é perdido ou desperdiçado, correspondendo a 1,3 bilhão de toneladas. As perdas de alimentos totalizam algo em torno de US$ 680 bilhões nos países industrializados e US$ 310 bilhões nos países em desenvolvimento; frutas e vegetais (como os tubérculos) têm as maiores taxas de desperdício; e quem mais tem é quem mais joga comida fora –  europeus e norte-americanos desperdiçam, per capita, entre 95 e 115 kg por ano, enquanto pessoas no norte da África e no sudeste da Ásia perdem apenas 6 a 11 kg por ano. No Brasil, segundo dados da FAO (Nações Unidas), a fome afeta 14 milhões de pessoas. São números grandes – e conter esse descaso com uma necessidade básica do ser humano pede ações urgentes, sistêmicas e universais.

O desperdício de alimentos representa uma grande perda também de recursos, algo que vai além dos produtos jogados fora. Isso porque a cadeia de produção de alimentos envolve uma multiplicidade de recursos para a sua sustentação. Podemos considerar, portanto, a perda de água, terra, energia, trabalho e capital – sem contar a geração desnecessária de emissões de gases de efeito estufa, que contribui diretamente para as mudanças climáticas. O impacto sobre as cidades é violento, uma vez que todas as externalidades – ou seja, os efeitos colaterais – da indústria alimentícia são muito maiores nos grandes centros urbanos.

Para enfrentar este descaso, é preciso, então, entender a sua motivação: por que desperdiçamos tantos alimentos? A resposta varia em função do estágio de desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento, o desperdício e as perdas ocorrem, principalmente, nos estágios iniciais da cadeia de valor dos alimentos – e vêm das questões gerenciais e técnicas de plantio e colheita até as instalações de armazenamento e refrigeração, por exemplo. 

Nos países desenvolvidos, os alimentos são desperdiçados e perdidos principalmente nas fases posteriores da cadeia de suprimentos – porque o comportamento dos consumidores desempenha um papel importante nos países industrializados.

Todos esses dados foram colhidos e analisados no estudo "Save Food", organizado pelas Nações Unidas a partir de 2011. Ao longo dos anos, a pesquisa vem identificando questões centrais para este problema, como a falta de coordenação entre os players da cadeia de suprimentos. Os resultados deste diagnóstico são, então, utilizados em estratégias para combater o problema: conscientizar indústrias, varejistas e consumidores, além de encontrar um uso benéfico para os alimentos que atualmente são jogados fora.

Thilo Becker/ Pixabay

Muitas ideias à mesa

Iniciativas paralelas e muito bem-sucedidas são suporte e evidências para esse novo olhar sobre como lidamos com a fonte de nossa alimentação. É o caso de diversas startups, as chamadas FoodTechs, que se dispõem a repensar pontos decisivos sobre o comportamento individual no consumo de produtos alimentícios. Um dos pontos determinantes é o visual da comida; sim, o visual importa para entender o desperdício. O Fruta Feia é uma iniciativa que tenta modificar esse mindset sobre os alimentos. 

O projeto português foi iniciado há mais de cinco anos para quebrar os padrões estéticos criados para o consumo de alimentos – que, como se sabe, não têm relação com sua qualidade ou mesmo servem para definir o quão seguro o produto está para o consumo. Em um sistema de cooperativas, o programa recolhe diretamente com os produtores e vende ao consumidor itens que seriam certamente dispensados por grandes redes de supermercados – tomates, cenouras ou batatas "esquisitos", com protuberâncias ou pontas, ganham o mesmo destino de itens "perfeitos" a um custo mais baixo.

Hoje, o Fruta Feia está disponível para milhares de consumidores em diversas cidades de Portugal – e programas semelhantes se espalham pelo mundo em lugares como São Francisco (com a Imperfect Produce) e São Paulo (com o Fruta Imperfeita).

Nichos para a atuação de startups que ajudem a conter o desperdício de alimentos não faltam. A norte-americana Copia desenvolveu a primeira solução para lidar ao mesmo tempo com alimentos jogados fora e a fome de pessoas carentes. Restaurantes, hotéis, hospitais, lanchonetes corporativas e outras empresas usam um software criado pela empresa para entender suas tendências de superprodução e reduzir o excedente a longo prazo, ao mesmo tempo em que o excesso de comida seja enviado para pessoas que necessitam do alimento.

Uma iniciativa brasileira também chama a atenção – e vinda de uma startup de cunho social (SocialTech) certificada pela "Save Food" da ONU. "Somos um hub de soluções tecnológicas contra o desperdício. Nossa função é, com uma estratégia de geolocalização, aproximar quem tem alimentos bons para serem doados daqueles que precisam desses recursos", diz Daniela Leite, fundadora do aplicativo Comida Invisível. "O desperdício é um hábito – e hábito a gente só muda com educação e recorrência. A gente quer que as pessoas olhem para o invisível, para todo esse processo mecânico de preparo, compra, transporte, produção dos alimentos", completa.

Gratuita e aberta, a plataforma permite que qualquer pessoa física e jurídica que queira doar e receber alimentos possa se cadastrar. Conversei sobre as Foodtechs com a Daniela e discutimos também o papel do poder público frente ao desafio do combate ao desperdício de alimentos.

Jasmin Sessler/ Pixabay

Ficou claro que o Brasil ainda precisa avançar muito. "Atualmente, há 30 projetos de lei em tramitação sobre o tema do desperdício de alimentos. Essa é uma questão básica a ser resolvida, porque existe um mito na questão do desperdício – de que a doação de alimentos é algo ilegal. Escuto muito dizer que não se pode doar porque, caso os alimentos façam mal a alguém, é possível responder judicialmente por isso. Nós, do Comida Invisível, fizemos uma extensa pesquisa sobre jurisprudência em relação a esse tema. Não achamos casos de pessoas que foram condenadas por terem doado alimentos. Temos que entender que o alimento é a maior rede social do mundo. Ele é o que nos une e, por um lado, também nos separa. Eu desejo que a gente possa fazer valer, de fato, essa importante conexão". 

As palavras de Daniela Leite sintetizam bem este desejo para o futuro: que o alimento possa ser fonte de união entre as pessoas – e as Foodtechs e a tecnologia possam contribuir de forma positiva e central para de fato erradicarmos a fome no mundo.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.