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Letícia Piccolotto

Com covid e avanço digital, qual Brasil vai celebrar o Dia da Independência

Letícia Piccolotto

07/09/2020 04h00

Gerd Altmann/ Pixabay

Hoje é o dia de celebrar a independência do Brasil. Esse é um marco muito relevante para todos os países que um dia foram colônia, especialmente porque simboliza a autonomia de nossa nação, que passa, então, a ser regida pela soberania de seus cidadãos. 

Para mim, uma apaixonada por história e política, a data sempre foi importante para realizar um balanço e reflexão sobre os avanços que alcançamos nesses quase dois séculos como nação independente. Algumas dessas conquistas, pude somente usufruir; enquanto que em outras, fui testemunha e, por vezes, participante direta.

Aos 7 anos, acompanhei a aprovação de nossa Constituição Federal –chamada por muitos de "Constituição Cidadã"– um verdadeiro marco depois de anos de ditadura e de violações aos direitos políticos e sociais.

Sempre tive a consciência da importância da conquista desses direitos, pois em casa esse tema era amplamente debatido. Meu pai chegou a ser preso na época da ditadura e dedicou boa parte da sua vida profissional e acadêmica debatendo os avanços políticos e sociais do Brasil.

Já quando adolescente, pude testemunhar a implementação de planos econômicos fundamentais para o desenvolvimento da nação, assim como ações bem-sucedidas para a redução da pobreza extrema, para a ampliação do acesso à educação básica e à saúde digna.

Em minha vida adulta, as conquistas da sociedade brasileira passaram a estar ainda mais presentes em minha vida. Me formei na universidade, me tornei mestre em Ciências Sociais e decidi trilhar o caminho do fortalecimento das políticas públicas, atuando no terceiro setor, e tenho tido o privilégio de trabalhar com gestores, especialistas e organizações comprometidas com o impacto e interesse públicos. Experiências bem-sucedidas nesse sentido não faltam. O Brasil pode, sim, dar certo.

O digital como saída

Falando especificamente da transformação digital nos governos, tema que é tratado aqui no blog e que está presente todos os dias da minha vida, os motivos para acreditar em um Brasil que já dá certo são ainda maiores: avançamos muito e temos perspectivas muito animadoras pela frente. 

Temos observado como os gestores públicos estão cada vez mais abertos à transformação digital. Antes um tema isolado e uma preocupação de alguns poucos, a digitalização de serviços passa a ser uma agenda prioritária para diversas cidades do país.

Esse movimento acontece seja porque já percebemos que as tecnologias digitais trazem maior eficiência e qualidade à atuação do setor público, mas  também porque há uma demanda dos cidadãos: queremos, cada vez mais, um governo que seja acessível, simples e rápido. Para isso, os serviços digitais devem ser uma realidade cada vez mais presente no setor público.

Também testemunhamos um fortalecimento da pauta govtech no Brasil. Segundo o relatório "Índice GovTech 2020", produzido pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), o Brasil ocupa o 4o lugar, entre 16 países, no desenvolvimento de seu ecossistema govtech.

Startups, pequenas e médias empresas, antes descrentes na possibilidade de ofertar produtos e serviços B2G (Business to Government), hoje têm enxergado o governo como um potencial parceiro e cliente. E o mais importante: estando à frente do BrazilLAB há 4 anos, acompanho o dia a dia de milhares de empreendedores govtech e, entre eles, há um profundo senso de propósito e comprometimento com o interesse público. 

E como tenho discutido aqui, podemos esperar muito mais a partir de agora. A pandemia de covid-19 trouxe diversos efeitos não esperados,  e um deles, certamente, é a aceleração da transformação digital dos governos. Mudanças que antes demorariam anos para acontecerem, foram implementadas em questão de dias ou semanas –por exemplo, o pagamento do auxílio emergencial e a digitalização do Poder Legislativo. Se conseguirmos manter essa onda positiva de transformação, conseguiremos avançar ainda mais na digitalização de serviços públicos.

Não é exagero dizer que o Brasil pode se tornar uma importante referência na agenda de governo digital, fazendo parte do seleto grupo de nações — como Estônia, Portugal, Reino Unido, Uruguai — que já adotaram as soluções tecnológicas como políticas estruturantes de Estado.

Momento sombrio

Mas minhas reflexões motivadas pelo aniversário de nossa independência mostram que estamos muito longe de um cenário redentor, em que o Brasil deixa de ser a promessa de uma nação do futuro, para se tornar a realidade no presente. Há anos vemos o declínio de nossas estruturas democráticas, com instituições e atores atentando, todos os dias, contra aquilo que construímos com tanto afinco e zelo.

Nos últimos meses, tem sido difícil enxergar o futuro do Brasil e acreditar que de fato podemos superar todos os desafios. A crise trazida pela covid-19 parece escancarar todos os aspectos mais sombrios e difíceis de sermos brasileiros.

Para onde quer que olhemos, vemos exemplos concretos do desastre na condução da crise: não temos articulação política entre governo federal, estados e municípios; os escândalos de corrupção se avolumam em um cenário no qual o dinheiro público deveria ser usado de maneira cautelosa e, sobretudo, eficiente; políticas públicas estratégicas são conduzidas com base no "achismo", e não na ciência; e, o pior, a sociedade está absolutamente desamparada economicamente, se vê confusa frente a orientações contraditórias e não tem a menor esperança de quando e como todo esse tormento poderá passar.

Ser brasileiro é também ser resiliente (Pixabay)

Resiliência

Meu texto de hoje pode soar como pessimista ou resignado. Mas esses são sentimentos que não tenho e nunca tive em relação ao nosso país. Somente com esperança e convicção na possibilidade de dar luz ao Brasil que dá certo e no poder da mudança poderia ter construído uma carreira de 20 anos no terceiro setor, tendo também empreendido meu próprio projeto, criando o BrazilLAB, o primeiro hub govtech do Brasil, que se dedica a conectar gestores públicos engajados e startups que tenham o propósito de impactar positivamente o governo.

Eu sempre acreditei e continuo acreditando no Brasil. É esse o país que me faz querer continuar. Mas há dias, especialmente tão simbólicos como o 7 de setembro, em que a urgência toma conta, assim como o sentimento de impotência em ser brasileiro. Há muito o que ainda caminhar. Há muitas dívidas que precisam ser sanadas. Há conquistas fundamentais que precisam se materializar. E, principalmente, há muito o que fazer hoje para impedir que retrocessos continuem a acontecer.

Nunca foi tão importante investirmos no diálogo, sobretudo, entre aqueles que são e pensam diferente entre si. Reconhecer a humanidade do outro e buscar construir a partir daquilo que enxergamos como semelhanças –ao invés de brigar por aquilo que é diferente– deverá ser a principal estratégia para que possamos superar a crise atual e pensar o Brasil que queremos e merecemos para o futuro.

Como nação, trilhamos um caminho com muitos desafios, derrotas e também conquistas. Como cidadã, alguém que nasceu em plena aurora da redemocratização, tinha a esperança de que essa história pudesse também trazer aprendizados que nos permitissem construir um futuro muito diferente do passado e do presente.

Como mãe de três crianças, tenho a urgência de construir um país digno para todos e todas pois, somente assim, terei a certeza de que esse será um melhor lugar para meus filhos.

Nos últimos meses, expandimos o nosso vocabulário e aprendemos novos conceitos para explicar o desafio que temos vivido: média móvel, taxa de contaminação, platô, isolamento social. Mas uma dessas novas palavras que passaram a integrar o discurso de muitos é "resiliência". Ela nasce da física, para descrever a capacidade que alguns corpos têm de voltar à sua forma natural mesmo depois de terem sido submetidos a alguma pressão.

Resiliência, em seu sentido figurado, deveria também ser a característica definidora de todos os brasileiros: mesmo nas adversidades, quando tudo parece confuso, nos adaptamos e conseguimos seguir, criando beleza e construindo sonhos. Por isso, eu também, sigo.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.