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Letícia Piccolotto

SpaceX é exemplo de GovTech que trouxe inovação da relação público-privado

Letícia Piccolotto

06/06/2020 04h00

Crew Dragon se aproxima da Estação Espacial Internacional nesta imagem de 31 de maio (Nasa)

A humanidade sempre teve o mais absoluto fascínio em relação ao universo. Desde os primórdios, sempre houve a busca por explorar e vivenciar todos os seus mistérios. E, na semana passada, um novo capítulo dessa história foi escrito: a empresa SpaceX, fundada por Elon Musk, realizou o primeiro voo comercial tripulado com destino à Estação Espacial Internacional (ou ISS, do inglês, "International Space Station").

O feito inaugura uma nova era para a relação dos seres humanos com o espaço. Isso acontece por, ao menos, dois principais motivos. Ele marca o retorno dos EUA ao protagonismo na exploração espacial, já que o país, desde 2011, não enviava astronautas em missões saídas diretamente do país. E, principalmente, inaugura um período de atuação comercial no espaço, pois o projeto é fruto de uma parceria público-privada entre a SpaceX e a Nasa (Agência Espacial Norte-Americana).

Mas chamo a atenção para um outro aspecto deste evento histórico. A experiência do SpaceX, seu foguete Falcon 9 e a cápsula Crew Dragon são um exemplo de como a relação público-privada pode ser um caminho muito rico para a construção de soluções que sejam tecnológicas e inovadoras. E mais importante: esse arranjo pode se estender para outros desafios do setor público – sejam eles a construção de foguetes para a conquista do espaço ou a criação de um aplicativo que permita que pais possam acompanhar a merenda escolar de seus filhos.

Falcon 9, da SpaceX, chega ao centro espacial Kennedy, da Nasa (SpaceX/ Nasa)

A experiência da Nasa com a SpaceX

Ainda que os EUA, por muitos anos, tenham dividido o cenário da exploração espacial com a Rússia – quem não se lembra da "corrida espacial" durante a Guerra Fria e o primeiro grande passo sobre o solo lunar – nos últimos anos, o país reduziu em grande medida o desenvolvimento de tecnologias para levar seres humanos ao espaço. O envio de astronautas americanos para a ISS, por exemplo, acontecia somente graças à uma parceria com a Rússia, algo que era extremamente custoso, já que cada passagem de ida-e-volta não saía por menos do que US$ 85 milhões.

Esse enredo começou a se transformar em 2010, quando a Nasa lançou o "Commercial Crew Program". Diferentemente de sua atuação anterior, quando a Nasa era responsável pelo desenvolvimento de toda a tecnologia de transporte de passageiros – desde os requerimentos técnicos mínimos até a construção completa do equipamento – o Commercial Crew Program definiu uma espécie de "desafio" para o mercado: a agência americana iria supervisionar a construção de um mecanismo de transporte que, de maneira segura, confiável e com boa relação custo-benefício, pudesse transportar humanos para a sub-órbita terrestre, incluindo a ISS. E as companhias concorrentes poderiam desenhar as tecnologias que considerassem mais adequadas – desde que atendessem aos requisitos definidos pela Nasa. Além disso, todo o conhecimento desenvolvido ao longo do processo seria partilhado entre as empresas envolvidas e a agência governamental.

O programa contou com um orçamento de mais de US$ 8 bilhões, divididos entre as diversas empresas que participaram da "competição". Dentre elas, as mais promissoras foram a Boeing – sim, a mesma que produz a maior parte das aeronaves do setor de transporte aéreo – e a SpaceX, empresa do mesmo fundador dos carros elétricos Tesla, o controverso Elon Musk.

A experiência pode ser descrita como extraordinária considerando diversas perspectivas, mas me atenho aqui a uma: ela exemplifica de maneira concreta o quanto é possível alcançar em termos de inovação tecnológica a partir da atuação conjunta dos setores público-privado.

Em muitos sentidos, a SpaceX é também uma GovTech [veja abaixo]: a empresa desenvolveu uma solução inovadora, de base tecnológica, para atender a um desafio complexo enfrentado pelo setor público.

As GovTechs contribuem para modernizar, automatizar e direcionar os recursos às funções mais estratégicas e complexas. As soluções tech são fundamentais para transformar digitalmente o setor público, assegurando que toda interação com governo possa acontecer de forma rápida, segura e efetiva, pelos canais mais convenientes para quem os utiliza.

A experiência demonstra que com a união desses dois universos, público e privado, é possível desenvolver soluções do século 21, que ajudem a enfrentar os diversos desafios que ainda persistem no Brasil e no mundo.

O que é preciso para ir ao infinito (e além!)  

A ideia de que setores público e privado (incluindo aqui universidades, centros de pesquisa e também a sociedade civil) atuem juntos para a resolução de desafios de interesse público não é inovadora. Aliás, há diversos exemplos de como isso se desenvolveu, seja no Brasil ou em outros países.

O Vale do Silício, berço de várias startups de sucesso, deve muito de seu desenvolvimento à proximidade com a Universidade de Stanford. A Fundação Bill e Melinda Gates, do fundador da Microsoft, também teve um papel fundamental para o desenvolvimento de tecnologias que pudessem ser aplicadas para o saneamento básico, um problema grave e mundial – como discuti aqui.

A Embraer, empresa brasileira de desenvolvimento de aeronaves, trabalha em conjunto com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e também se insere em um rico ecossistema de startups do chamado Parahyba Valley, na região de São José dos Campos (SP). Há também experiências lideradas por governos locais, como o Pitch Sampa e o Pitch Gov.SP, concursos criados pela cidade e pelo estado de São Paulo, respectivamente, e que têm como objetivo a contratação de soluções inovadoras construídas por startups. Do Pitch Gov.SP nasceu, por exemplo, o Poupinha, o chatbot do Poupatempo para atendimento ao cidadão.

E há também experiências do BrazilLAB, primeiro hub de inovação GovTech do Brasil. Todo o ano lançamos um programa de aceleração no formato de desafios para buscar soluções do mercado de startups que possam apoiar a gestão pública.

Hoje já temos 25% do portfólio vendendo ativamente para o setor público, com startups de referência – como Colab, Cuco Health, Gesuas e Fábrica de Negócio.

A PGS Medical, uma solução health tech para o cuidado de pacientes com doenças crônicas, faz parte de nossa rede e também é pioneira: trata-se da primeira startup público-privada de tecnologia do Brasil – uma parceria entre a Prefeitura de Penedo (cidade de Alagoas) e uma empresa privada da área de saúde.

Lançamento da Falcon 9 no último dia 30. Inovação é um projeto que se constrói a várias mãos (Bill Ingalls/ Nasa)

Há muitas evidências positivas dessa relação entre os diversos atores em prol da inovação no setor público. No Brasil, para que esse movimento seja ainda mais fortalecido, será preciso garantir a combinação de, ao menos, três elementos.

Primeiro, uma legislação de compras públicas que considere as características tão singulares da inovação: tempo, recursos, adaptabilidade, construção colaborativa, experimentação e aprendizado. Todos esses fatores são difíceis de alcançar com a legislação atual, a chamada Lei 8.666/93. Mesmo com as alterações trazidas pela Lei 10.973/2004, conhecida como Lei de Inovação, que incluiu a modalidade de encomenda tecnológica, a estrutura de compras no setor público não incentiva a inovação – quando não a compromete totalmente.

É imprescindível desenvolver o ecossistema GovTech. Ainda que ele tenha um potencial extraordinário, são poucos os empresários e fundos de investimentos dispostos a construir soluções para o setor público. Há uma noção compartilhada de que é um mercado com poucas oportunidades e baixos retornos, mas é exatamente o contrário: segundo dados da Public, a indústria pode movimentar US$ 400 bilhões até 2025. Não faltam oportunidades para negócios GovTech prosperarem economicamente e garantirem soluções que tenham propósito e potencial para gerar impactos positivos.

Por fim, é preciso fortalecer as capacidades do setor público, sejam elas técnicas, de liderança e gestão. Afinal, a missão da SpaceX não foi bem-sucedida somente por ter envolvido o trabalho de uma empresa privada, mas sim porque foi construída em conjunto com a Nasa, uma agência governamental de referência, com profissionais absolutamente capacitados e comprometidos em implementar uma estratégia de longo prazo para o desenvolvimento do setor espacial no país.

É possível se beneficiar da atuação conjunta de vários atores – suas inteligências, perspectivas e recursos – desde que sejam garantidas as condições para tal. Inovação no setor público é um projeto de longo prazo e que se constrói a muitas mãos. E essa cooperação é fundamental para gerar uma tecnologia que nos leve ao espaço ou aquela que nos ajude a resolver problemas históricos que estão bem aqui, em solo terrestre.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.