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Letícia Piccolotto

Um novo mundo surge após a pandemia? Veja 5 rumos que podemos tomar

Letícia Piccolotto

25/04/2020 04h00

Pandemia do coronavírus traz transformações para o mundo govtech (Freepik)

Na teoria do caos, o efeito borboleta busca descrever como pequenas mudanças em uma determinada dimensão podem reverberar de maneira intensa em outro domínio. Tudo está conectado e dessa crença surge seu principal jargão: o bater de asas de uma borboleta pode causar um tornado do outro lado do mundo. 

Se aplicarmos a mesma lógica ao momento atual, qual será a potência das transformações trazidas pela pandemia de coronavírus? Um fenômeno em escala global, que transformou a dinâmica de praticamente todos os países e que tem sido descrito por muitos especialistas como o principal evento desde a Segunda Guerra Mundial vai muito além do que o simples bater de asas de uma borboleta, certamente. 

Nos últimos dias, tenho refletido sobre a onda de mudanças que ainda virá e escrito sobre isso nas minhas redes sociais. E é no mundo da tecnologia que essas tendências devem estar mais presentes. É certo que elas devem surgir com diferentes intensidades, atingindo distintas proporções. Podem significar o desenvolvimento de novas tecnologias; a adoção intensiva de aplicações já existentes; ou, ainda, o uso cada vez mais presente de determinadas soluções em nosso dia a dia. 

Se é verdade que nem tudo será radicalmente transformado, também podemos dizer que nada será como antes – especialmente na tecnologia aplicada ao governo.

Compartilho 5 tendências para o universo govtech trazidas pela crise.

  1. Revoluções na saúde: o protagonismo das healthtechs e da telemedicina

Sem sombra de dúvidas, a área de saúde é uma das principais impactadas pela pandemia de coronavírus. Há certa obviedade nisso, já que o momento demanda estratégias que possam ampliar a capacidade, a velocidade e a qualidade dos atendimentos, em um esforço para "achatar" a curva de contaminação e também impedir o colapso do sistema de saúde. 

Fazem parte desse esforço o desenvolvimento de tratamentos para os sintomas da doença, assim como a tão necessária vacina. Mas para além dos medicamentos, duas principais tendências se destacam: o uso da telemedicina e o trabalho das healthtechs.  

A telemedicina é uma modalidade de atendimento que possibilita a realização de consultas à distância. Com ajuda de uma câmera – de celular ou computador – um paciente pode contar sobre os seus sintomas, enquanto o profissional de saúde indica o melhor tratamento a ser adotado. 

A prática ainda não havia sido regulamentada no Brasil, mas a pandemia do coronavírus e a necessidade de garantir atendimento ao mesmo tempo em que se evita a aglomeração de pessoas em hospitais ou consultórios acelerou o processo. Para isso, foi aprovada a Lei 13.989, em 15 de abril, reconhecendo a possibilidade de atendimento à distância durante a pandemia – e, a princípio, tão somente durante ela. 

A telemedicina vinha sendo oferecida a partir do trabalho das healthtechs, startups que atuam com tecnologia na saúde. Além desta modalidade, as startups oferecem diversas outras soluções: monitoramento epidemiológico, atendimento psicológico, gestão de equipes médicas, atendimento via chatbot e cursos para gestores e profissionais da saúde. Falei sobre elas aqui e aqui

Em outros países, há soluções ainda mais disruptivas sendo desenvolvidas para o diagnóstico, tratamento e gestão das políticas de saúde. Em Israel, por exemplo, as startups são as protagonistas desse esforço tecnológico. A BATM tem desenvolvido testes rápidos para detecção do vírus, com resultados que saem em até 50 minutos. De maneira semelhante, a Diagnostics.ai está trabalhando para desenvolver um teste PCR utilizando inteligência artificial. A Biobeat, por sua vez, tem contribuído para o monitoramento dos sinais vitais de pacientes através de um wearable – um equipamento similar a um relógio e que acompanha dados da pressão arterial, pulsação e temperatura. 

A pandemia de coronavírus tem se mostrado um verdadeiro laboratório para as novas tecnologias de saúde em larga escala. É importante que todos estejamos atentos à implementação dessas soluções e que possamos aprimorar as iniciativas, especialmente considerando a necessidade de garantir a segurança dos usuários e a eficácia dos tratamentos. 

  1. Robôs e inteligência artificial: tecnologias emergentes não serão mais coisa do futuro

Há tempos temos visto como os robôs saíram do universo dos filmes de ficção para estarem presentes no cotidiano das pessoas. Alguns deles são mais comuns e quase imperceptíveis, como é o caso dos chatbots, robôs utilizados para comunicação em sites ou aplicativos dos mais diversos serviços – de bancos até atendimento nos equipamentos públicos. Com a epidemia do coronavírus, esse processo se intensificou: os robôs e a inteligência artificial que permite o seu funcionamento estão atuando na linha de frente, sobretudo nos serviços de saúde. 

No Brasil, a tecnologia está cada vez mais presente. No Hospital das Clínicas, em São Paulo, os robôs de telepresença têm sido destinados para a triagem de pacientes. O objetivo é ampliar a capacidade de atendimento ao mesmo tempo em que se reduz o risco de contaminação de profissionais da saúde. 

O Ministério da Saúde também tem usado a tecnologia de bots alinhada à inteligência artificial para realizar a busca ativa de casos do coronavírus. Desde o início de abril, estão sendo realizados disparos telefônicos automatizados que permitem a avaliação dos sintomas e também o compartilhamento de informações para prevenção. Espera-se que os disparos realizados através do número 136 atinjam mais de 120 milhões de brasileiros, gerando um grande volume de dados – e inteligência – para apoiar as ações de saúde. 

Em São Paulo, a inteligência artificial também tem sido aplicada. O governo estadual firmou parcerias com empresas de telefonia móvel e, em conjunto com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), tem realizado o monitoramento em tempo real do deslocamento populacional em São Paulo. Iniciativa semelhante foi desenvolvida pela startup Inloco, que criou o "Mapa Brasileiro da Covid-19", um indicador que permite acompanhar a eficácia das medidas de isolamento social em curso. 

Os robôs e a inteligência artificial têm sido cada vez mais utilizados e se mostram como aliados fundamentais na luta contra o coronavírus para trazer previsibilidade, capacidade de atendimento e segurança a todos.

  1. Nova era da informação? Pandemia pode ajudar a reduzir o fenômeno das fake news

Essa é a primeira pandemia vivenciada com a presença massiva de fontes de comunicação. Seja através das formas mais tradicionais, como a TV aberta ou jornais, ou com o auxílio das redes sociais, temos acesso a uma quantidade imensa e diversa de informações, de maneira ininterrupta, todos os dias. 

Também vivemos a primeira pandemia na era das fake news – o compartilhamento proposital de informações falsas, sem fundamentação ou distorcidas. E elas têm proliferado nos grupos de WhatsApp, Instagram ou Facebook. São notícias sobre curas milagrosas, teorias conspiratórias ou conteúdo de ódio. Alcançando milhões de pessoas, as fake news são mais uma ameaça que deve ser combatida assim como temos enfrentado o coronavírus. 

Em meio a esse fenômeno perverso, temos visto, ao menos aqui no Brasil, algumas notícias que trazem alento. Pesquisas nacionais produzidas pelo Datafolha e Ibope apontam como a população tem se voltado às mídias tradicionais para se informar de maneira confiável sobre a crise. Segundo levantamento do Ibope, 88% consideram as notícias apresentadas pela TV aberta como confiáveis, ao passo que sites e portais de notícias correspondem a 86%. 

Um indicador, no entanto, é bastante peculiar: ainda que o WhatsApp tenha sido apontado como confiável por somente 27% dos entrevistados ele é utilizado como fonte por 40% da amostra. Em outras palavras, é possível concluir que há muitas pessoas utilizando as informações sem que elas sejam, sequer, confiáveis. A grande questão que tiro a partir desta observação é: por que informações falsas e potencialmente perigosas e cujos impactos são conhecidos continuam a ser compartilhadas por mais e mais pessoas?

Na semana passada, falei sobre o significado da pandemia de coronavírus para a comunicação e para o fenômeno das fake news. Ainda é muito cedo para afirmar que veremos transformações disruptivas nesse campo – mas a semente já foi plantada. E o uso de tecnologias pode ser fundamental para combater a disseminação de notícias falsas, ao mesmo tempo que ampliamos as boas práticas para o compartilhamento de informações transparentes entre os diversos grupos da sociedade. A crise que temos vivido deixou o seu recado: as pessoas querem confiar em fontes seguras e estas, por sua vez, precisam desenvolver novas formas de se comunicar e interagir com a população. 

  1. Transparência e privacidade: proteção de dados pessoais será mais importante do que nunca

(Pixabay)

A pandemia do coronavírus tem reafirmado como os dados são preciosos. Sem eles, seria impossível realizar o monitoramento da doença, fazer projeções sobre o seu crescimento ou até mesmo desenhar estratégias de isolamento social que sejam efetivas. 

A centralidade e potência dos dados também expõe a linha tênue entre seu uso efetivo e o risco de expor informações dos indivíduos. Afinal, nunca é demais destacar: quando governos de todo o mundo – inclusive no Brasil – têm implementado com sucesso sistemas de monitoramento, eles os fazem tão somente graças aos dados de pessoas reais e que possuem o direito à sua privacidade e segurança

Antes mesmo da pandemia de coronavírus, a segurança de dados era pauta central das agendas de transformação digital de diversos países. Há alguns meses discuti aqui no blog a importância de questão. Mostrei que há startups dedicadas a garantir a segurança e privacidade das pessoas, assim como diversas empresas e governos estão longe de respeitá-la, além das distintas legislações que estão surgindo para garantir o controle do nosso "eu digital". 

No Brasil, a aplicação de sanções previstas na Lei Geral de Proteção de Dados, também conhecida como LGPD, foi adiada para agosto de 2021 em virtude da crise trazida pelo coronavírus – originalmente, passaria a valer a partir do mesmo mês, este ano. A suspensão provisória desse importante instrumento legal convive com as crescentes iniciativas para realizar o monitoramento de deslocamento de pessoas no contexto de isolamento social.

A segurança e privacidade de dados pessoais é assunto da maior relevância. Os resultados da sua aplicação nas ações bem-sucedidas de controle do coronavírus não podem esconder ou minimizar o quanto essas condições são um direito fundamental dos indivíduos. Assim, assegurar que as leis sejam cumpridas, que as organizações adaptem suas práticas e que sejam garantidas as condições para o monitoramento de sua aplicação devem ser ações urgentes e prioritárias.

  1. Internet e computadores: porque não haverá transformação digital sem conexão

A crise demonstrou a importância de estarmos conectados. Aplicativos como WhatsApp e suas funcionalidades de videochamada têm sido fundamentais para manter o contato com amigos e familiares durante o período de isolamento social. Mas ela também expõe o quão frágil é nossa conectividade à internet

Isso é especialmente verdade se considerarmos a utilização da internet nos serviços de saúde, já que a maioria das soluções desenvolvidas para enfrentar a crise dependem não só da utilização de computadores, celulares ou tablets, mas também da conectividade à internet. 

Trabalhando há 20 anos com a gestão pública e há 4 anos à frente do BrazilLAB, tenho visto de perto os desafios enfrentados por municípios de todo o país. Em inúmeras visitas a equipamentos públicos – de UBS aos CRAS – testemunhei como é precária a infraestrutura tecnológica. 

Os dados do Cetic-BR sobre instituições de saúde confirmam esse diagnóstico: em 2018, das 40.500 Unidades Básicas de Saúde (UBS) analisadas, 20% (mais de 8 mil equipamentos públicos) não tinham acesso a computador ou à internet. Além disso, somente 12% das informações cadastrais e clínicas de pacientes estão em meio eletrônico – enquanto 35% permanecem somente em meio físico, ou seja, prontuários em papel com baixa possibilidade de análise das informações, algo que é tão precioso quando falamos de políticas públicas de saúde. Quando consideradas as informações sobre conectividade, o cenário é ainda pior: 44% das instituições públicas de saúde possuem velocidade de download de dados de até 10 mpbs – somente 13% têm velocidade acima de 10 e até 100 mpbs. 

A garantia de conectividade à internet é uma pré-condição para a transformação digital no setor público. A pandemia do coronavírus demonstrou como esse elemento é fundamental e como ainda precisamos avançar no estabelecimento de formas mais avançadas de conexão, por exemplo, a modalidade 5G. É preciso reconhecer que sem a infraestrutura necessária, não conseguiremos aproveitar toda a potencialidade trazida pelas soluções hoje existentes – nem avançaremos para aplicações mais robustas e disruptivas no setor público. 

Ainda há muito trabalho pela frente

A pandemia do coronavírus trouxe impactos profundos, alertas, oportunidades de experimentação e, sobretudo, tendências positivas para o mundo da tecnologia. Mas essas tendências são o que são: possibilidades que podem ou não ser cultivadas. O seu desenvolvimento dependerá, sobretudo, de nossa capacidade em aproveitar o cenário para implementar mudanças de longo prazo e que venham para ficar. 

Ele deverá passar pela garantia de infraestrutura, pela criação e aplicação de leis que possam trazer segurança a todos e também por nossa capacidade de registrar e avaliar aprendizados. E sobretudo: dependerá de nossa capacidade de valorizar as ações na área de tecnologia. Leia-se: garantir investimentos para projetos, instituições e startups dedicadas a produzir soluções de base tecnológica para as mais diversas áreas. 

Alguns exemplos já começam a surgir, como o MIT Solve, programa dedicado a identificar e fortalecer ações para enfrentar o coronavírus; o desafio proposto pelo XPrize em busca de soluções para combater a doença ou o programa desenvolvido pela Comissão Europeia para financiar startups na área de inovação e tecnologia. 

Mas é preciso ir além. Temos que desenvolver ações de maneira constante, e não somente durante eventos emergenciais. Elas precisam considerar as realidades nacionais e regionais. Incorporar o risco trazido pela inovação. A mudança só começou e ainda temos um longo e trabalhoso caminho pela frente. 

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.