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Letícia Piccolotto

O que já dá para notar da "nova normalidade" que está surgindo da pandemia

Letícia Piccolotto

18/04/2020 04h00

Podemos esperar mudanças no mundo do trabalho graças à pandemia do coronavírus (Gerd Altmann/ Pixabay)

Já se passaram quase 40 dias desde o início das medidas de distanciamento social no Brasil. Os números crescem de maneira exponencial e, até a finalização deste texto, na tarde de 17 de abril, já contabilizávamos mais de 30 mil pessoas infectadas pelo coronavírus e quase 2 mil mortes. O estado de São Paulo protagoniza o epicentro da pandemia, respondendo por 38% de todos os casos identificados no país. 

As medidas recomendadas por órgãos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) são implementadas com intensidades variadas pelos estados e municípios, mas têm se concentrado em algumas ações específicas: suspensão do comércio não-essencial, eventos cancelados por tempo indeterminado, fechamento de escolas e universidades e ações de conscientização para proteção pessoal (uso de máscaras, higiene e distanciamento social).

Não há clareza sobre até quando o plano de contingência deve ser mantido. Embora especialistas venham destacando o quanto as medidas de isolamento social são fundamentais e têm gerado resultados, o próprio Ministério da Saúde começou a discutir, na última semana, um plano para afrouxar as regras em estados e municípios –medida precipitada, na visão de muitos. 

Ainda temos um longo caminho a trilhar na pandemia de coronavírus, em nível local, regional ou global. Embora estejamos todos atentos às medidas de curto prazo e às mudanças que acontecem de um dia para o outro, também estamos conectados com o futuro e com a pergunta que não quer calar: quando voltaremos ao normal? 

Mudanças trazidas pela pandemia

A pandemia de coronavírus trouxe consigo diversos "efeitos colaterais". São mudanças profundas nas diversas atividades de nossas vidas – quase todas impulsionadas pela necessidade do distanciamento social. E nesse sentido, algumas medidas que poderiam demorar anos para serem implementadas são adotadas em poucas semanas –em alguns casos, dias– graças à urgência do tempo presente. 

É no mundo do trabalho que vemos uma das mais significativas transformações, já que muitas pessoas têm tido a oportunidade de continuar executando suas tarefas desde casa. As primeiras semanas podem ter sido complexas e muito dedicadas à adaptação –seja a definição de um espaço funcional, a criação de uma rotina ou a incorporação de algumas ferramentas que antes não eram tão usadas, como aplicativos de trabalho colaborativo, comunicação ou agendamento de tarefas e compromissos.

Tudo considerado, acredito que o saldo é muito positivo: temos desenvolvido a habilidade de trabalhar remotamente e há chances de que esse seja um modelo que continue sendo replicado no mundo pós-pandemia. E há muitos ganhos, seja ambientais, mas também pessoais e para a otimização do tempo. 

Na educação temos observado um movimento parecido, com crianças, jovens e também adultos acompanhando as aulas de maneira remota. Diversas escolas no Brasil fizeram a transição para a modalidade digital e, na França, por exemplo, as aulas têm sido transmitidas na rede aberta de televisão.

Tem sido especialmente interessante observar como o público da geração Z, aqueles nascidos entre o final dos anos 1990 até 2010, conseguiu desenvolver uma relação muito particular com as tecnologias digitais, utilizando-as com a naturalidade de alguém que não conhece o mundo sem a existência de um computador ou smartphone. Minhas filhas pequenas, por exemplo, conseguem interagir e se concentrar nas videoaulas –esforço que é quase impossível para muitos adultos.

Considerados todos os impactos dessa medida, e reforçando a importância do ensino presencial, especialmente na educação básica, é possível reconhecer que a educação à distância é uma alternativa que pode continuar sendo explorada no futuro. 

A pandemia também tem transformado dimensões muito particulares, especialmente o sentimento de confiança nas instituições mais tradicionais, como a mídia e a comunidade científica. Segundo pesquisa do Ibope, 88% da população consideram que a TV aberta é um meio confiável para obter informações sobre a epidemia. Na mesma avaliação, esse percentual foi de 27% para o aplicativo WhatsApp.

O mesmo fenômeno tem sido observado internacionalmente, como mostra a pesquisa "Edelman Trust Barometer": 83% dos entrevistados apontam que os cientistas são as pessoas em quem mais confiam para se informar sobre a covid-19. 

Foram necessários muitos anos para que o movimento das fake news pudesse se transformar em uma perversa realidade, de modo que ainda é cedo para afirmar que uma nova onda de confiança nas ciências e na comunicação poderá se consolidar. De todo modo, os dados não deixam de nos trazer a esperança de que esse poderá ser um legado muito positivo trazido pela pandemia. 

Inovação e tecnologia: protagonismo e dilemas

Freepik

A utilização extensiva de tecnologias pode estar cada vez mais presente em nossas vidas. Busquei mostrar como elas são estratégicas nos esforços para combater a pandemia [veja aqui e aqui]. 

Por exemplo, a inteligência artificial tem sido utilizada nos diagnósticos e também para realizar projeções sobre a disseminação do vírus; a realização de consultas tem sido possível com a telemedicina; e diversas ferramentas tecnológicas têm apoiado órgãos governamentais no esforço de desenhar estratégias de saúde pública. 

Na China, por exemplo, o WeChat, aplicativo muito semelhante ao WhatsApp, está sendo aplicado para monitorar pessoas que potencialmente podem estar doentes. No Brasil, a startup In Loco fez algo muito parecido, criando o Mapa Brasileiro da covid-19. Construído com base na tecnologia de geolocalização, a solução consegue mapear informações sobre o comportamento da localização de mais de 60 milhões de brasileiros. Uma informação fundamental para direcionar esforços de conscientização sobre a importância do isolamento social. 

O uso de tecnologias também tem sido central para garantir o pagamento do auxílio emergencial para pessoas em vulnerabilidade econômica, como trabalhadores informais. Para ter acesso ao benefício, é preciso realizar o cadastramento via site ou aplicativo da Caixa Econômica Federal. Os pagamentos já foram iniciados e podem beneficiar, direta ou indiretamente, 117 milhões de pessoas, conforme dados do Ipea

Embora seja muito positivo observar como o uso de tecnologias e a digitalização de serviços têm avançado de maneira exponencial graças à emergência trazida pela pandemia, também cabe destacar os riscos que esse movimento pode trazer.

Primeiro, de que não seja garantida a segurança de informações pessoais. Esse é um dilema enfrentado por diversos países e também pode se tornar uma realidade aqui, caso não sejam discutidas medidas para assegurar que a vigilância não viole os direitos individuais à privacidade.

Segundo, que as medidas criadas para acolher as pessoas em vulnerabilidade acabem por aprofundar a desigualdade social – por exemplo, ao restringir que a solicitação do benefício emergencial seja realizada somente pela internet ou celular. 

A pandemia tem sido um laboratório para observar como a transformação tecnológica é fundamental para as nossas vidas. Tão importante quanto observar seus incontáveis benefícios é buscar combater os seus possíveis efeitos negativos. 

O que esperar daqui pra frente

Se é verdade que a crise, cedo ou tarde, deve passar, também estou segura de que não haverá "um normal" para o qual possamos voltar. Um acontecimento desta magnitude e extensão não vai embora sem deixar rastros: sairemos todos permanentemente modificados. Mas isso não deve significar, necessariamente, algo ruim. 

Podemos esperar que a experiência com a pandemia seja transformadora para a coletividade e também para os indivíduos. Veremos outros comportamentos em relação ao trabalho e ao mundo da educação, assim como novos sentimentos em relação às instituições tradicionais da sociedade. A interação com as pessoas, nossas famílias e amigos, também terá um novo sentido. 

Sobretudo, ficará muito evidente a importância que a tecnologia tem para a nossa vida e como a sua presença foi fundamental para enfrentar esse desafio coletivo. 

Em resumo, não seremos mais os mesmos. Ainda bem.

Sobre a autora

Letícia Piccolotto é mestre em Ciências Sociais, especialista em Gestão Pública pela Harvard Kennedy School e fundadora do BrazilLAB, a única plataforma brasileira que conecta startups e governos para estimular a inovação no setor público.

Sobre o blog

Acelerar ideias e estimular uma cultura voltada para a inovação do setor público. Este é um blog para falar de empreendedores engajados em buscar soluções para os desafios mais complexos vividos pela sociedade brasileira.